CONSTITUIÇÃO PASTORAL
GAUDIUM ET SPES
SOBRE A IGREJA NO MUNDO ACTUAL
PROÉMIO(1)
Íntima união da Igreja com toda a
família humana
1. As alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de
todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade
alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.
Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo,
são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino
do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por
este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género
humano e à sua história.
A quem se dirige o Concílio: todos
os homens
2. Por isso, o Concílio Vaticano II,
tendo investigado mais profundamente o mistério da Igreja, não hesita
agora em dirigir a sua palavra, não já apenas aos filhos da Igreja e a
quantos invocam o nome de Cristo, mas a todos os homens. Deseja
expor-lhes o seu modo de conceber a presença e actividade da Igreja no
mundo de hoje.
Tem, portanto, diante dos olhos o mundo
dos homens, ou seja a inteira família humana, com todas as realidades no
meio das quais vive; esse mundo que é teatro da história da humanidade,
marcado pelo seu engenho, pelas suas derrotas e vitórias; mundo, que os
cristãos acreditam ser criado e conservado pelo amor do Criador; caído,
sem dúvida, sob a escravidão do pecado, mas libertado pela cruz e
ressurreição de Cristo, vencedor do poder do maligno; mundo, finalmente,
destinado, segundo o desígnio de Deus, a ser transformado e alcançar a
própria realização.
Para iluminar a problemática
humana e salvar o homem
3. Nos nossos dias, a humanidade, cheia
de admiração ante as próprias descobertas e poder, debate, porém, muitas
vezes, com angústia, as questões relativas à evolução actual do mundo,
ao lugar e missão do homem no universo, ao significado do seu esforço
individual e colectivo, enfim, ao último destino das criaturas e do
homem.
Por isso, o Concílio, testemunhando e
expondo a fé do Povo de Deus por Cristo congregado, não pode manifestar
mais eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor para com a
inteira família humana, na qual está inserido, do que estabelecendo com
ela diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do Evangelho e
pondo à disposição do género humano as energias salvadoras que a Igreja,
conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se, com
efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana.
Por isso, o homem será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem na
sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência,
inteligência e vontade.
Eis a razão por que este sagrado
Concílio, proclamando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele
está depositado um germe divino, oferece ao género humano a sincera
cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal que a
esta vocação corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas
ùnicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do Espírito
Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da
verdade (2), para salvar e não para julgar, para servir e não para ser
servido (3).
INTRODUÇÃO
A CONDIÇÃO DO HOMEM
NO MUNDO ACTUAL
Esperanças e temores
4. Para levar a cabo esta missão, é
dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e
interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de
modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do
sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por
isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas
esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático.
Algumas das principais características do mundo actual podem delinear-se
do seguinte modo.
A humanidade vive hoje uma fase nova da
sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem
progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e
actividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre
os seus juízos e desejos individuais e colectivos, sobre os seus modos
de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal
modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e
cultural, que se reflecte também na vida religiosa.
Como acontece em qualquer crise de
crescimento, esta transformação traz consigo não pequenas dificuldades.
Assim, o homem, que tão imensamente alarga o próprio poder, nem sempre é
capaz de o pôr ao seu serviço. Ao procurar penetrar mais fundo no
interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a seu próprio
respeito. E, descobrindo gradualmente com maior clareza as leis da vida
social, hesita quanto à direcção que a esta deve imprimir.
Nunca o género humano teve ao seu dispor
tão grande abundância de riquezas, possibilidades e poderio económico;
e, no entanto, uma imensa parte dos habitantes da terra é atormentada
pela fome e pela miséria, e inúmeros são ainda os analfabetos. Nunca os
homens tiveram um tão vivo sentido da liberdade como hoje, em que surgem
novas formas de servidão social e psicológica. Ao mesmo tempo que o
mundo experimenta intensamente a própria unidade e a interdependência
mútua dos seus membros na solidariedade necessária, ei-lo gravemente
dilacerado por forças antagónicas; persistem ainda, com efeito, agudos
conflitos políticos, sociais, económicos, «raciais» e ideológicos, nem
está eliminado o perigo duma guerra que tudo subverta. Aumenta o
intercâmbio das ideias; mas as próprias palavras com que se exprimem
conceitos da maior importância assumem sentidos muito diferentes segundo
as diversas ideologias. Finalmente, procura-se com todo o empenho uma
ordem temporal mais perfeita, mas sem que a acompanhe um progresso
espiritual proporcionado.
Marcados por circunstâncias tão
complexas, muitos dos nossos contemporâneos são incapazes de discernir
os valores verdadeiramente permanentes e de os harmonizar com os
novamente descobertos. Daí que, agitados entre a esperança e a angústia,
sentem-se oprimidos pela inquietação, quando se interrogam acerca da
evolução actual dos acontecimentos. Mas esta desafia o homem, força-o
até a uma resposta.
Evolução e domínio da técnica e da
ciência
5. A actual perturbação dos espíritos e
a mudança das condições de vida, estão ligadas a uma transformação mais
ampla, a qual tende a dar o predomínio, na formação do espírito, às
ciências matemáticas e naturais, e, no plano da acção, às técnicas,
fruto dessas ciências. Esta mentalidade científica modela a cultura e os
modos de pensar duma maneira diferente do que no passado. A técnica
progrediu tanto que transforma a face da terra e tenta já dominar o
espaço.
Também sobre o tempo estende a
inteligência humana o seu domínio: quanto ao passado, graças ao
conhecimento histórico; relativamente ao futuro, com a prospectiva e a
planificação. Os progressos das ciências biológicas, psicológicas e
sociais não só ajudam o homem a conhecer-se melhor, mas ainda lhe
permitem exercer, por meios técnicos, uma influência directa na vida das
sociedades. Ao mesmo tempo, a humanidade preocupa-se cada vez mais com
prever e ordenar o seu aumento demográfico.
O próprio movimento da história torna-se
tão rápido, que os indivíduos dificilmente o podem seguir. O destino da
comunidade humana torna-se um só, e não já dividido entre histórias
independentes. A humanidade passa, assim, duma concepção
predominantemente estática da ordem das coisas para um outra,
preferentemente dinâmica e evolutiva; daqui nasce uma nova e imensa
problemática, a qual está a exigir novas análises e novas sínteses.
Mudanças na ordem social
6. Pelo mesmo facto, verificam-se cada
dia maiores transformações nas comunidades locais tradicionais, como são
famílias patriarcais, as clãs, as tribos, aldeias e outros diferentes
grupos, e nas relações da convivência social.
Difunde-se progressivamente a sociedade
de tipo industrial, levando algumas nações à opulência económica e
transformando radicalmente as concepções e as condições de vida social
vigentes desde há séculos. Aumentam também a preferência e a busca da
vida urbana, quer pelo aumento das cidades e do número de seus
habitantes, quer pela difusão do género de vida urbana entre os
camponeses.
Novos e mais perfeitos meios de
comunicação social permitem o conhecimento dos acontecimentos e a rápida
e vasta difusão dos modos de pensar e de sentir; o que, por sua vez, dá
origem a. numerosas repercussões.
Nem se deve minimizar o facto de muitos
homens, levados por diversos motivos a emigrar, mudarem com isso o
próprio modo de viver.
Multiplicam-se assim sem cessar as
relações do homem com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que a própria
socialização introduz novas ligações, sem no entanto favorecer em todos
os casos uma conveniente maturação das pessoas e relações
verdadeiramente pessoais («personalização»).
É verdade que tal evolução aparece mais
claramente nas nações que beneficiam já das vantagens do progresso
económico e técnico, mas nota-se também entre os povos ainda em vias de
desenvolvimento, que desejam alcançar para os seus países os benefícios
da industrialização e da urbanização. Esses povos, sobretudo os que
estão ligados a tradições mais antigas, sentem ao mesmo tempo a
exigência dum exercício cada vez mais pessoal da liberdade.
Transformações psicológicas,
morais e religiosas
7. A transformação de mentalidade e de
estruturas põe muitas vezes em questão os valores admitidos, sobretudo
no caso dos jovens. Tornam-se frequentemente impacientes e mesmo, com a
inquietação, rebeldes; conscientes da própria importância na vida
social, aspiram a participar nela o mais depressa possível. Por este
motivo, os pais e educadores encontram não raro crescentes dificuldades
no desempenho da sua missão.
Por sua vez, as instituições, as leis e
a maneira de pensar e de sentir herdadas do passado nem sempre parecem
adaptadas à situação actual; e daqui provém uma grave perturbação no
comportamento e até nas próprias normas de acção.
Por fim, as novas circunstâncias afectam
a própria vida religiosa. Por um lado, um sentido crítico mais apurado
purifica-a duma concepção mágica do mundo e de certas sobrevivências
supersticiosas, e exige cada dia mais a adesão a uma fé pessoal e
operante; desta maneira, muitos chegam a um mais vivo sentido de Deus.
Mas, por outro lado, grandes massas afastam-se pràticamente da religião.
Ao contrário do que sucedia em tempos passados, negar Deus ou a
religião, ou prescindir deles já não é um facto individual e insólito:
hoje, com efeito, isso é muitas vezes apresentado como exigência do
progresso científico ou dum novo tipo de humanismo. Em muitas regiões,
tudo isto não é apenas afirmado no meio filosófico, mas invade em larga
escala a literatura, a arte, a interpretação das ciências do homem e da
história e até as próprias leis civis; o que provoca a desorientação de
muitos.
Desequilíbrios pessoais familiares
e sociais
8. Uma tão rápida evolução, muitas vezes
processada desordenadamente e, sobretudo, a consciência mais aguda das
desigualdades existentes no mundo, geram ou aumentam contradições e
desequilíbrios.
Ao nível da própria pessoa, origina-se
com frequência um desequilíbrio entre o saber prático moderno e o pensar
teórico, que não consegue dominar o conjunto dos seus conhecimentos nem
ordená-los em sínteses satisfatórias. Surge também desequilíbrio entre a
preocupação da eficiência prática e as exigências da consciência moral;
outras vezes, as condições colectivas da existência e as exigências do
pensamento pessoal e até da contemplação. Gera-se, finalmente, o
desequilíbrio entre a especialização da actividade humana e a visão
global da realidade.
No seio da família, originam-se tensões,
quer devido à pressão das condições demográficas, económicas e sociais,
quer pelas dificuldades que surgem entre as diferentes gerações, quer
pelo novo tipo de relações sociais entre homens e mulheres.
Grandes discrepâncias surgem entre as
raças e os diversos grupos sociais; entre as nações ricas, as menos
prósperas e as pobres; finalmente, entre as instituições internacionais,
nascidas do desejo de paz que os povos têm, e a ambição de propagar a
própria ideologia ou os egoísmos colectivos existentes nas nações e em
outros grupos.
Daqui nascem desconfianças e inimizades
mútuas, conflitos e desgraças, das quais o homem é simultâneamente causa
e vítima.
Aspirações mais universais do
género humano
9. Entretanto, vai crescendo a convicção
de que o género humano não só pode e deve aumentar cada vez mais o seu
domínio sobre as coisas criadas, mas também lhe compete estabelecer uma
ordem política, social e económica, que o sirva cada vez melhor e ajude
indivíduos e grupos a afirmarem e desenvolverem a própria dignidade.
Daqui vem a insistência com que muitos
reivindicam aqueles bens de que, com uma consciência muito viva, se
julgam privados por injustiça ou por desigual distribuição. As nações em
vias de desenvolvimento, e as de recente independência desejam
participar dos bens da civilização, não só no campo político mas também
no económico, e aspiram a desempenhar livre. mente o seu papel no plano
mundial; e, no entanto, aumenta cada dia mais a sua distância, e muitas
vezes, simultâneamente, a sua dependência mesmo económica com relação às
outras nações mais ricas e de mais rápido progresso. Os povos oprimidos
pela fome interpelam os povos mais ricos. As mulheres reivindicam, onde
ainda a não alcançaram, a paridade de direito e de facto com os homens.
Os operários e os camponeses querem não apenas ganhar o necessário para
viver, mas desenvolver, graças ao trabalho, as próprias qualidades; mais
ainda, querem participar na organização da vida económica, social,
política e cultural. Pela primeira vez na história dos homens, todos os
povos têm já a convicção de que os bens da cultura podem e devem
estender-se efectivamente a todos.
Subjacente a todas estas exigências,
esconde-se, porém, uma aspiração mais profunda e universal: as pessoas e
os grupos anelam por uma vida plena e livre, digna do homem, pondo ao
próprio serviço tudo quanto o mundo de hoje lhes pode proporcionar em
tanta abundância. E as nações fazem esforços cada dia maiores por chegar
a uma certa comunidade universal.
O mundo actual apresenta-se, assim,
simultâneamente poderoso e débil, capaz do melhor e do pior, tendo
patente diante de si o caminho da liberdade ou da servidão, do progresso
ou da regressão, da fraternidade ou do ódio. E o homem torna-se
consciente de que a ele compete dirigir as forças que suscitou, e que
tanto o podem esmagar como servir. Por isso se interroga a si mesmo.
Jesus Cristo, resposta e solução
da problemática humana
10. Na verdade, os desequilíbrios de que
sofre o mundo actual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental
que se radica no coração do homem. Porque no íntimo do próprio homem
muitos elementos se com batem. Enquanto, por uma parte, ele se
experimenta, como criatura que é, mùltiplamente limitado, por outra
sente-se ilimitado nos seus desejos, e chamado a uma vida superior.
Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas e
a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes
aquilo que não quer e não realiza o que desejaria fazer (4). Sofre assim
em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão grandes discórdias se
originam para a sociedade. Muitos, sem dúvida, que levam uma vida
impregnada de materialismo prático, não podem ter uma clara percepção
desta situação dramática; ou, oprimidos pela miséria, não lhe podem
prestar atenção. Outros pensam encontrar a paz nas diversas
interpretações da realidade que lhes são propostas. Alguns só do esforço
humano esperam a verdadeira e plena libertação do género humano, e estão
convencidos que o futuro império do homem sobre a terra satisfará todas
as aspirações do seu coração. E não faltam os que, desesperando de poder
encontrar um sentido para a vida, louvam a coragem daqueles que,
julgando a existência humana vazia de qualquer significado, se esforçam
por lhe conferir, por si mesmos, todo o seu valor. Todavia, perante a
evolução actual do mundo, cada dia são mais numerosos os que põem ou
sentem com nova acuidade as questões fundamentais: Que é o homem? Qual o
sentido da dor, do mal, e da morte, que, apesar do enorme progresso
alcançado, continuam a existir? Para que servem essas vitórias, ganhas a
tão grande preço? Que pode o homem dar à sociedade, e que coisas pode
dela receber? Que há para além desta vida terrena?
A Igreja, por sua parte, acredita que
Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todos (5), oferece aos homens
pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua
altíssima vocação; nem foi dado aos homens sob o céu outro nome, no qual
devam ser salvos (6). Acredita também que a chave, o centro e o fim de
toda a história humana se encontram no seu Senhor e mestre. E afirma,
além disso, que, subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas
que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje, e
para sempre (7). Quer, portanto, o Concílio, à luz de Cristo, imagem de
Deus invisível e primogénito de toda a criação (8), dirigir-se a todos,
para iluminar o mistério do homem e cooperar na solução das principais
questões do nosso tempo.
PRIMEIRA PARTE
A IGREJA E A VOCAÇÃO DO HOMEM
Que pensa a Igreja sobre o homem
11. O Povo de Deus, movido pela fé com
que acredita ser conduzido pelo Espírito do Senhor, o qual enche o
universo, esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e
aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são
os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus. Porque a fé
ilumina todas as coisas com uma luz nova, e faz conhecer o desígnio
divino acerca da vocação integral do homem e, dessa forma, orienta o
espírito para soluções plenamente humanas.
O Concílio propõe-se, antes de mais,
julgar a esta luz os valores que hoje são mais apreciados e pô-los em
relação com a sua fonte divina. Tais valores, com efeito, na medida em
que são fruto do engenho que Deus concedeu aos homens, são excelentes,
mas, por causa da corrupção do coração humano, não raro são desviados da
sua recta ordenação e precisam de ser purificados.
Que pensa a Igreja acerca do homem? Que
recomendações parecem dever fazer-se, em ordem à construção da sociedade
actual? Qual é o significado último da actividade humana no universo?
Espera-se uma resposta para estas perguntas. Aparecerá então mais
claramente que o Povo de Deus e o género humano, no qual aquele está
inserido, se prestam mútuo serviço; manifestar-se-á assim o carácter
religioso e, por isso mesmo, profundamente humano da missão da Igreja.
CAPÍTULO I
A DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA
O homem criado à imagem de Deus
12. Tudo quanto existe sobre a terra
deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste
ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não-crentes.
Mas, que é o homem? Ele próprio já
formulou, e continua a formular, acerca de si mesmo, inúmeras opiniões,
diferentes entre si e até contraditórias. Segundo estas, muitas vezes se
exalta até se constituir norma absoluta, outras se abate até ao
desespero. Daí as suas dúvidas e angústias. A Igreja sente profundamente
estas dificuldades e, instruída pela revelação de Deus, pode dar-lhes
uma resposta que defina a verdadeira condição do homem, explique as suas
fraquezas, ao mesmo tempo que permita conhecer com exactidão a sua
dignidade e vocação.
A Sagrada Escritura ensina que o homem
foi criado «à imagem de Deus», capaz de conhecer e amar o seu Criador, e
por este constituído senhor de todas as criaturas terrenas (1), para as
dominar e delas se servir, dando glória a Deus (2). «Que é, pois, o
homem, para que dele te lembres? ou o filho do homem, para que te
preocupes com ele? Fizeste dele pouco menos que um anjo, coroando-o de
glória e de esplendor. Estabeleceste-o sobre a obra de tuas mãos, tudo
puseste sob os seus pés» (Salmo 8, 5-7).
Deus, porém, não criou o homem sòzinho:
desde o princípio criou-os «varão e mulher (Gén. 1,27); e a sua união
constitui a primeira forma de comunhão entre pessoas. Pois o homem, por
sua própria natureza, é um ser social, que não pode viver nem
desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os outros.
Como também lemos na Sagrada Escritura,
Deus viu «todas as coisas que fizera, e eram excelentes» (Gén. 1,31).
O pecado e suas consequências
13. Estabelecido por Deus num estado de
santidade, o homem, seduzido pelo maligno, logo no começo da sua
história abusou da própria liberdade, levantando-se contra Deus e
desejando alcançar o seu fim fora d'Ele. Tendo conhecido a Deus, não lhe
prestou a glória a Ele devida, mas o seu coração insensato obscureceu-se
e ele serviu à criatura, preferindo-a ao Criador (3). E isto que a
revelação divina nos dá a conhecer, concorda com os dados da
experiência. Quando o homem olha para dentro do próprio coração,
descobre-se inclinado também para o mal, e imerso em muitos males, que
não podem provir de seu Criador, que é bom. Muitas vezes, recusando
reconhecer Deus como seu princípio, perturbou também a devida orientação
para o fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua ordenação quer para si
mesmo, quer para os demais homens e para toda a criação.
O homem encontra-se, pois, dividido em
si mesmo. E assim, toda a vida humana, quer singular quer colectiva,
apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e
as trevas. Mais: o homem descobre-se incapaz de repelir por si mesmo as
arremetidas do inimigo: cada um sente-se como que preso com cadeias. Mas
o Senhor em pessoa veio para libertar e fortalecer o homem, renovando-o
interiormente e lançando fora o príncipe deste mundo (cfr. Jo. 12,31),
que o mantinha na servidão do pecado (4). Porque o pecado diminui o
homem, impedindo-o de atingir a sua plena realização.
A sublime vocação e a profunda miséria
que os homens em si mesmos experimentam, encontram a sua explicação
última à luz desta revelação.
Constituição do homem: sua
natureza
14. O homem, ser uno, composto de corpo
e alma, sintetiza em si mesmo, pela sua natureza corporal, os elementos
do mundo material, os quais, por meio dele, atingem a sua máxima
elevação e louvam livremente o Criador (5). Não pode, portanto,
desprezar a vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o seu corpo
como bom e digno de respeito, pois foi criado por Deus e há-de
ressuscitar no último dia. Todavia, ferido pelo pecado, o homem
experimenta as revoltas do corpo. É, pois, a própria dignidade humana
que exige que o homem glorifique a Deus no seu corpo (6), não deixando
que este se escravize às más inclinações do próprio coração. Não se
engana o homem, quando se reconhece por superior às coisas materiais e
se considera como algo mais do que simples parcela da natureza ou
anónimo elemento da cidade dos homens. Pela sua interioridade,
transcende o universo das coisas: tal é o conhecimento profundo que ele
alcança quando reentra no seu interior, onde Deus, que perscruta os
corações (7), o espera, e onde ele, sob o olhar do Senhor, decide da
própria sorte. Ao reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e imortal,
não se ilude com uma enganosa criação imaginativa, mero resultado de
condições físicas e sociais; atinge, pelo contrário, a verdade profunda
das coisas.
Dignidade do entendimento
15. Participando da luz da inteligência
divina, com razão pensa o homem que supera, pela inteligência, o
universo. Exercitando incansàvelmente, no decurso dos séculos, o próprio
engenho, conseguiu ele grandes progressos nas ciências empíricas, nas
técnicas e nas artes liberais. Nos nossos dias, alcançou notáveis
sucessos, sobretudo na investigação e conquista do mundo material. Mas
buscou sempre, e encontrou, uma verdade mais profunda. Porque a
inteligência não se limita ao domínio dos fenómenos; embora, em
consequência do pecado, esteja parcialmente obscurecida e debilitada,
ela é capaz de atingir com certeza a realidade inteligível.
Finalmente, a natureza espiritual da
pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na sabedoria,
que suavemente atrai o espírito do homem à busca e amor da verdade e do
bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até às
invisíveis.
Mais do que os séculos passados, o nosso
tempo precisa de uma tal sabedoria, para que se humanizem as novas
descobertas dos homens. Está ameaçado, com efeito, o destino do mundo,
se não surgirem homens cheios de sabedoria. E é de notar que muitas
nações, pobres em bens económicos, mas ricas em sabedoria, podem trazer
às outras inapreciável contribuição.
Pelo dom do Espírito Santo, o homem
chega a contemplar e saborear, na fé, o mistério do plano divino (8).
Dignidade da consciência moral
16. No fundo da própria consciência, o
homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve
obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do
mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto,
evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus;
a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado(9). A
consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se
encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser
(10). Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que
se realiza no amor de Deus e do próximo (11). Pela fidelidade à voz da
consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de
buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem
na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a recta
consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da
arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objectivas
da moralidade. Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por
ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro
tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade
e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o
hábito do pecado.
Grandeza da liberdade
17. Mas é só na liberdade que o homem se
pode converter ao bem. Os homens de hoje apreciam grandemente e procuram
com ardor esta liberdade; e com toda a razão. Muitas vezes, porém,
fomentam-na dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de
fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade. A liberdade
verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. Pois Deus
quis «deixar o homem entregue à sua própria decisão» (12), para que
busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à total e
beatífica perfeição, aderindo a Ele. Exige, portanto, a dignidade do
homem que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão,
ou seja movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por
cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa. O homem atinge
esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende
para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente
iniciativa os meios convenientes. A liberdade do homem, ferida pelo
pecado, só com a ajuda da graça divina pode tornar plenamente efectiva
esta orientação para Deus. E cada um deve dar conta da própria vida
perante o tribunal de Deus, segundo o bem ou o mal que tiver praticado
(13).
A imortalidade e o enigma da morte
18. É em face da morte que o enigma da
condição humana mais se adensa. Não é só a dor e a progressiva
dissolução do corpo que atormentam o homem, mas também, e ainda mais, o
temor de que tudo acabe para sempre. Mas a intuição do próprio coração
fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o
desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele
existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte. Todas as
tentativas da técnica, por muito úteis que sejam, não conseguem acalmar
a ansiedade do homem: o prolongamento da longevidade biológica não pode
satisfazer aquele desejo duma vida ulterior, invencìvelmente radicado no
seu coração.
Enquanto, diante da morte, qualquer
imaginação se revela impotente, a Igreja, ensinada pela revelação
divina, afirma que o homem foi criado por Deus para um fim feliz, para
além dos limites da miséria terrena. A fé cristã ensina que a própria
morte corporal, de que o homem seria isento se não tivesse pecado (14) -
acabará por ser vencida, quando o homem for pelo omnipotente e
misericordioso Salvador restituído à salvação que por sua culpa perdera.
Com efeito, Deus chamou e chama o homem a unir-se a Ele com todo o seu
ser na perpétua comunhão da incorruptível vida divina. Esta vitória,
alcançou-a Cristo ressuscitado, libertando o homem da morte com a
própria morte (15). Portanto, a fé, que se apresenta à reflexão do homem
apoiada em sólidos argumentos, dá uma resposta à sua ansiedade acerca do
seu destino futuro; e ao mesmo tempo oferece a possibilidade de
comunicar em Cristo com os irmãos queridos que a morte já levou, fazendo
esperar que eles alcançaram a verdadeira vida junto de Deus.
Formas e raízes do ateísmo
19. A razão mais sublime da dignidade do
homem consiste na sua vocação à união com Deus. É desde o começo da sua
existência que o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe,
é só porque, criado por Deus por amor, é por Ele por amor constantemente
conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não
reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador. Porém,
muitos dos nossos contemporâneos não atendem a esta íntima e vital
ligação a Deus, ou até a rejeitam explicitamente; de tal maneira que o
ateísmo deve ser considerado entre os factos mais graves do tempo actual
e submetido a atento exame.
Com a palavra
«ateísmo», designam-se fenómenos
muito diversos entre si. Com efeito, enquanto alguns negam expressamente
Deus, outros pensam que o homem não pode afirmar seja o que for a seu
respeito; outros ainda, tratam o problema de Deus de tal maneira que ele
parece não ter significado. Muitos, ultrapassando indevidamente os
limites das ciências positivas, ou pretendem explicar todas as coisas só
com os recursos da ciência, ou, pelo contrário, já não admitem nenhuma
verdade absoluta. Alguns, exaltam de tal modo o homem, que a fé em Deus
perde toda a força, e parecem mais inclinados a afirmar o homem do que a
negar Deus. Outros, concebem Deus de uma tal maneira, que aquilo que
rejeitam não é de modo algum o Deus do Evangelho. Outros há que nem
sequer abordam o problema de Deus: parecem alheios a qualquer
inquietação religiosa e não percebem por que se devem ainda preocupar
com a religião. Além disso, o ateísmo nasce muitas vezes dum protesto
violento contra o mal que existe no mundo, ou de se ter atribuído
indevidamente o carácter de absoluto a certos valores humanos que passam
a ocupar o lugar de Deus. A própria civilização actual, não por si mesma
mas pelo facto de estar muito ligada com as realidades terrestres, torna
muitas vezes mais difícil o acesso a Deus.
Sem dúvida que não estão imunes de culpa
todos aqueles que procuram voluntàriamente expulsar Deus do seu coração
e evitar os problemas religiosos, não seguindo o ditame da própria
consciência; mas os próprios crentes, muitas vezes, têm responsabilidade
neste ponto. Com efeito, o ateísmo, considerado no seu conjunto, não é
um fenómeno originário, antes resulta de várias causas, entre as quais
se conta também a reacção crítica contra as religiões e, nalguns países,
principalmente contra a religião cristã. Pelo que os crentes podem ter
tido parte não pequena na génese do ateísmo, na medida em que, pela
negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da
doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e
social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico
rosto de Deus e da religião.
O ateísmo sistemático
20. O ateísmo moderno apresenta muitas
vezes uma forma sistemática, a qual, prescindindo de outros motivos,
leva o desejo de autonomia do homem a um tal grau que constitui um
obstáculo a qualquer dependência com relação a Deus. Os que professam
tal ateísmo, pretendem que a liberdade consiste em ser o homem o seu
próprio fim, autor único e demiurgo da sua história; e pensam que isso é
incompatível com o reconhecimento de um Senhor, autor e fim de todas as
coisas; ou que, pelo menos, torna tal afirmação plenamente supérflua. O
sentimento de poder que os progressos técnicos hodiernos deram ao homem
pode favorecer esta doutrina.
Não se deve passar em silêncio, entre as
formas actuais de ateísmo, aquela que espera a libertação do homem
sobretudo da sua libertação económica. A esta, dizem, opõe-se por sua
natureza a religião, na medida em que, dando ao homem a esperança duma
enganosa vida futura, o afasta da construção da cidade terrena. Por
isso, os que professam esta doutrina, quando alcançam o poder, atacam
violentamente a religião, difundindo o ateísmo também por aqueles meios
de pressão de que dispõe o poder público, sobretudo na educação da
juventude.
Atitude da Igreja perante o
ateísmo
21. A Igreja, fiel a Deus e aos homens,
não pode deixar de reprovar com dor e com toda a firmeza, como já o fez
no passado (16), essas doutrinas e actividades perniciosas, contrárias à
razão e à experiência comum dos homens, e que destronam o homem da sua
inata dignidade.
Procura, no entanto, descobrir no
espírito dos ateus as causas da sua negação de Deus, e, consciente da
gravidade dos problemas levantados pelo ateísmo, e, levada pelo amor dos
homens, entende que elas devem ser objecto de um exame sério e profundo.
A Igreja defende que o reconhecimento de
Deus de modo algum se opõe à dignidade do homem, uma vez que esta
dignidade se funda e se realiza no próprio Deus. Com efeito, o homem
inteligente e livre, foi constituído em sociedade por Deus Criador; mas
é sobretudo chamado a unir-se, como filho, a Deus e a participar na sua
felicidade. Ensina, além disso, a Igreja que a importância das tarefas
terrenas não é diminuída pela esperança escatológica, mas que esta antes
reforça com novos motivos a sua execução. Pelo contrário, se faltam o
fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade humana é
gravemente lesada, como tantas vezes se verifica nos nossos dias, e os
enigmas da vida e da morte, do pecado e da dor, ficam sem solução, o que
frequentemente leva os homens ao desespero.
Entretanto, cada homem permanece para si
mesmo um problema insolúvel, apenas confusamente pressentido. Ninguém
pode, na verdade, evitar inteiramente esta questão em certos momentos, e
sobretudo nos acontecimentos mais importantes da vida. Só Deus pode
responder plenamente e com toda a certeza, Ele que chama o homem a uma
reflexão mais profunda e a uma busca mais humilde.
Quanto ao remédio para o ateísmo, ele
há-de vir da conveniente exposição da doutrina e da vida íntegra da
Igreja e dos seus membros. Pois a Igreja deve tornar presente e como que
visível a Deus Pai e a seu Filho encarnado, renovando-se e
purificando-se continuamente sob a direcção do Espírito Santo (17). Isto
há-de alcançar-se, antes de mais, com o testemunho duma fé viva e
adulta, educada de modo a poder perceber claramente e superar as
dificuldades. Magnífico testemunho desta fé deram e continuam a dar
inúmeros mártires. Ela deve manifestar a sua fecundidade, penetrando
toda a vida dos fiéis, mesmo a profana, levando-os à justiça e ao amor,
sobretudo para com os necessitados. Finalmente, o que contribui mais que
tudo para manifestar a presença de Deus é a caridade fraterna dos fiéis
que unânimemente colaboram com a fé do Evangelho (18) e se apresentam
como sinal de unidade.
Ainda que rejeite inteiramente o
ateísmo, todavia a Igreja proclama sinceramente que todos os homens,
crentes e não-crentes, devem contribuir para a recta construção do mundo
no qual vivem em comum. O que não é possível sem um prudente e sincero
diálogo. Deplora, por isso, a discriminação que certos governantes
introduzem entre crentes e não-crentes, com desconhecimento dos direitos
fundamentais da pessoa humana. Para os crentes, reclama a liberdade
efectiva, que lhes permita edificar neste mundo também o templo de Deus.
Quanto aos ateus, convida-os cortêsmente a considerar com espírito
aberto o Evangelho de Cristo.
Pois a Igreja sabe perfeitamente que, ao
defender a dignidade da vocação do homem, restituindo a esperança
àqueles que já desesperam do seu destino sublime, a sua mensagem está de
acordo com os desejos mais profundos do coração humano. Longe de
diminuir o homem, a sua mensagem contribui para o seu bem, difundindo
luz, vida e liberdade; e, fora dela, nada pode satisfazer o coração
humano: «fizeste-nos para Ti», Senhor, e o nosso coração está inquieto,
enquanto não repousa em Ti» (19).
Cristo, o homem novo
22. Na realidade, o mistério do homem só
no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o
primeiro homem, era efectivamente figura do futuro (20), isto é, de
Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do
Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua
vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas
tenham n'Ele a sua fonte e n'Ele atinjam a plenitude.
«Imagem de Deus invisível» (Col. 1,15)
(21), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão semelhança
divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que, n'Ele, a natureza
humana foi assumida, e não destruída (22), por isso mesmo também em nós
foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o
Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos
humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana
(23), amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se
verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado
(24).
Cordeiro inocente, mereceu-nos a vida
com a livre efusão do seu sangue; n 'Ele nos reconciliou Deus consigo e
uns com os outros (25) e nos arrancou da escravidão do demónio e do
pecado. De maneira que cada um de nós pode dizer com o Apóstolo: o Filho
de Deus «amou-me e entregou-se por mim» (Gál. 2,20). Sofrendo por nós,
não só nos deu exemplo, para que sigamos os seus passos (26), mas também
abriu um novo caminho, em que a vida e a morte são santificados e
recebem um novo sentido.
O cristão, tornado conforme à imagem do
Filho que é o primogénito entre a multidão dos irmãos (27), recebe «as
primícias do Espírito» (Rom. 8,23), que o tornam capaz de cumprir a lei
nova do amor (28). Por meio deste Espírito, «penhor da herança (Ef.
1,14), o homem todo é renovado interiormente, até à «redenção do corpo»
(Rom. 8,23): «Se o Espírito d'Aquele
que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Aquele que
ressuscitou Jesus de entre os mortos dará também a vida aos vossos
corpos mortais, pelo seu Espírito que em vós habita» (Rom. 8,11) (29). É
verdade que para o cristão é uma necessidade e um dever lutar contra o
mal através de muitas tribulações, e sofrer a morte; mas, associado ao
mistério pascal, e configurado à morte de Cristo, vai ao encontro da
ressurreição, fortalecido pela esperança (30).
E o que fica dito, vale não só dos
cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a
graça opera ocultamente (31). Com efeito, já que por todos morreu Cristo
(32) e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber,
a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade
de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus
conhecido.
Tal é, e tão grande, o mistério do
homem, que a revelação cristã manifesta aos que crêem. E assim, por
Cristo e em Cristo, esclarece-se o enigma da dor e da morte, o qual,
fora do Seu Evangelho, nos esmaga. Cristo ressuscitou, destruindo a
morte com a própria morte, e deu-nos a vida (33), para que, tornados
filhos no Filho, exclamemos no Espírito: Abba, Pai (34).
CAPÍTULO II
A COMUNIDADE HUMANA
Propósito do Concílio
23. Entre os principais aspectos do
mundo actual conta-se a multiplicação das relações entre os homens, cujo
desenvolvimento é muito favorecido pelos progressos técnicos hodiernos.
Todavia, o diálogo fraterno entre os homens não se realiza ao nível
destes progressos, mas ao nível mais profundo da comunidade de pessoas,
a qual exige o mútuo respeito da sua plena dignidade espiritual. A
revelação cristã favorece poderosamente esta comunhão entre as pessoas,
ao mesmo tempo que nós leva a uma compreensão mais profunda das leis da
vida social que o Criador inscreveu na natureza espiritual e moral do
homem.
Dado, porém, que recentes documentos do
magistério eclesiástico expuseram a doutrina cristã acerca da sociedade
humana (1), o Concílio limita-se a recordar algumas verdades mais
importantes e a expor o seu fundamento à luz da revelação. Insiste,
seguidamente, em algumas consequências de maior importância para o nosso
tempo.
Índole comunitária da vocação
humana
24. Deus, que por todos cuida com
solicitude paternal, quis que os homens formassem uma só família, e se
tratassem uns aos outros como irmãos. Criados todos à imagem e
semelhança daquele Deus que «fez habitar sobre toda a face da terra o
inteiro género humano, saído dum princípio único» (Act. 17,26), todos
são chamados a um só e mesmo fim, que é o próprio Deus.
E por isso, o amor de Deus e do próximo
é o primeiro e maior de todos os mandamentos. Mas a Sagrada Escritura
ensina-nos que o amor de Deus não se pode separar do amor do próximo,
«...todos os outros mandamentos se resumem neste: amarás o próximo como
a ti mesmo... A caridade é, pois, a lei na sua plenitude» (Rom. 13,
9-10; cfr. 1 Jo. 4,20). Isto revela-se como sendo da maior importância,
hoje que os homens se tornam cada dia mais dependentes uns dos outros e
o mundo se unifica cada vez mais.
Mais ainda: quando o Senhor Jesus pede
ao Pai «que todos sejam um..., como nós somos um» (Jo. 17, 21-22),
sugere - abrindo perspectivas inacessíveis à razão humana - que dá uma
certa analogia entre a união das pessoas divinas entre si e a união dos
filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança torna manifesto
que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si
mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si
mesmo (2).
Interdependência da pessoa humana e da sociedade
humana
25. A natureza social do homem torna
claro que o progresso da pessoa humana e o desenvolvimento da própria
sociedade estão em mútua dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma
vez que, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social (3), é
e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições
sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao homem,
este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de
responder à própria vocação, graças ao contacto com os demais, ao mútuo
serviço e ao diálogo com seus irmãos.
Entre os laços sociais, necessários para
o desenvolvimento do homem, alguns, como a família e a sociedade
política, correspondem mais imediatamente à sua natureza íntima; outros
são antes fruto da sua livre vontade. No nosso tempo, devido a várias
causas, as relações e interdependências mútuas multiplicam-se cada vez
mais; o que dá origem a diversas associações e instituições, quer
públicas quer privadas. Este facto, denominado socialização, embora não
esteja isento de perigos, traz, todavia, consigo muitas vantagens, em
ordem a confirmar e desenvolver as qualidades da pessoa humana e a
proteger os seus direitos (4).
Porém, se é verdade que as pessoas
humanas recebem muito desta vida social, em ordem a realizar a própria
vocação, mesmo a religiosa, também não se pode negar que os homens são
muitas vezes afastados do bem ou impelidos ao mal pelas condições em que
vivem e estão mergulhados desde a infância. É certo que as perturbações
tão frequentes da ordem social vêm, em grande parte, das tensões
existentes no seio das formas económicas, políticas e sociais. Mas, mais
profundamente, nascem do egoísmo e do orgulho dos homens, os quais
também pervertem o ambiente social. Onde a ordem das coisas se encontra
viciada pelas consequências do pecado, o homem, nascido com uma
inclinação para o mal, encontra novos incitamentos para o pecado, que
não pode superar sem grandes esforços e ajudado pela graça.
Promoção do bem-comum
26. A interdependência, cada vez mais
estreita e progressivamente estendida a todo o mundo, faz com que o bem
comum - ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem,
tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e fàcilmente a
própria perfeição - se torne hoje cada vez mais universal e que, por
esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo o
género humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas
aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família
humana (5).
Simultâneamente, aumenta a consciência
da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as
coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É
necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que
necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento,
vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de
constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao
respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da
própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade
mesmo em matéria religiosa.
A ordem social e o seu progresso devem,
pois, reverter sempre em bem das pessoas, já que a ordem das coisas deve
estar subordinada à ordem das pessoas e não ao contrário; foi o próprio
Senhor quem o insinuou ao dizer que o sábado fora feito para o homem,
não o homem para o sábado (6). Essa ordem, fundada na verdade,
construída sobre a justiça e vivificada pelo amor, deve ser cada vez
mais desenvolvida e, na liberdade, deve encontrar um equilíbrio cada vez
mais humano (7). Para o conseguir, será necessária a renovação da
mentalidade e a introdução de amplas reformas sociais.
O Espírito de Deus, que dirige o curso
dos tempos e renova a face da terra com admirável providência, está
presente a esta evolução. E o fermento evangélico despertou e desperta
no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade.
Respeito da pessoa humana
27. Vindo a conclusões práticas e mais
urgentes, o Concílio recomenda a reverência para com o homem, de maneira
que cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um «outro eu»,
tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários para a
levar dignamente (8), não imitando aquele homem rico que não fez caso
algum do pobre Lázaro (9).
Sobretudo em nossos dias, urge a
obrigação de nos tornarmos o próximo de todo e qualquer homem, e de o
servir efectivamente quando vem ao nosso . encontro - quer seja o
ancião, abandonado de todos, ou o operário estrangeiro injustamente
desprezado, ou o exilado, ou o filho duma união ilegítima que sofre
injustamente por causa dum pecado que não cometeu, ou o indigente que
interpela a nossa consciência, recordando a palavra do Senhor: «todas as
vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o
fizestes» (Mt. 25,40).
Além disso, são infames as seguintes
coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de
homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o
que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os
tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias
consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as
condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações,
a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também
as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados
como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e
responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao
mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles
que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem
gravemente a honra devida ao Criador.
Respeito e amor dos adversários
28. O nosso respeito e amor devem
estender-se também àqueles que pensam ou actuam diferentemente de nós em
matéria social, política ou até religiosa. Aliás, quanto mais
intimamente compreendermos, com delicadeza e caridade, a sua maneira de
ver, tanto mais fàcilmente poderemos com eles dialogar.
Evidentemente, este amor e benevolência
de modo algum nos devem tornar indiferentes perante a verdade e o bem.
Pelo contrário, é o próprio amor que incita os discípulos de Cristo a
anunciar a todos a verdade salvadora. Mas deve distinguir-se entre o
erro, sempre de rejeitar, e aquele que erra, o qual conserva sempre a
dignidade própria de pessoas, mesmo quando está atingido por ideias
religiosas falsas ou menos exactas (10). Só Deus é juiz e penetra os
corações; por esse motivo, proibe-nos Ele de julgar da culpabilidade
interna de qualquer pessoa (11).
A doutrina de Cristo exige que também
perdoemos as injúrias (12), e estende a todos os inimigos o preceito do
amor, que é o mandamento da lei nova: «ouvistes que foi dito: amarás o
teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Mas eu digo-vos: amai os vossos
inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e
caluniam» (Mt. 5, 43-44).
Igualdade essencial entre todos os homens
29. A igualdade fundamental entre todos
os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de
alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e
origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino
divinos.
Sem dúvida, os homens não são todos
iguais quanto à capacidade física e forças intelectuais e morais,
variadas e diferentes em cada um. Mas deve superar-se e eliminar-se,
como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de
discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do
sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião. É realmente de
lamentar que esses direitos fundamentais da pessoa ainda não sejam
respeitados em toda a parte. Por exemplo, quando se nega à mulher o
poder de escolher livremente o esposo ou o estado de vida ou de
conseguir uma educação e cultura iguais às do homem.
Além disso, embora entre os homens haja
justas diferenças, a igual dignidade pessoal postula, no entanto, que se
chegue a condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as
excessivas desigualdades económicas e sociais entre os membros e povos
da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça
social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz
social e internacional.
Procurem as instituições humanas,
privadas ou públicas, servir a dignidade e o destino do homem,
combatendo ao mesmo tempo valorosamente contra qualquer forma de
sujeição política ou social e salvaguardando, sob qualquer regime
político, os direitos humanos fundamentais. Mais ainda: é necessário que
tais instituições se adaptem progressivamente às realidades espirituais,
que são as mais elevadas de todas; embora por vezes se requeira um tempo
razoàvelmente longo para chegar a esse desejado fim.
Superação da ética individualista
30. A profundidade e rapidez das
transformações reclamam com maior urgência que ninguém se contente, por
não atender à evolução das coisas ou por inércia, com uma ética
puramente individualística. O dever de justiça e caridade cumpre-se cada
vez mais com a contribuição de cada um em favor do bem comum, segundo as
próprias possibilidades e as necessidades dos outros, promovendo
instituições públicas ou privadas e ajudando as que servem para melhorar
as condições de vida dos homens. Mas há pessoas que, fazendo profissão
de ideias amplas e generosas, vivem sempre, no entanto, de tal modo como
se nenhum caso fizessem das necessidades sociais. E até, em vários
países, muitos desprezam as leis e prescrições sociais. Não poucos
atrevem-se a eximir-se, com várias fraudes e enganos, aos impostos e
outras obrigações sociais. Outros desprezam certas normas da vida
social, como por exemplo as estabelecidas para defender a saúde ou para
regularizar o trânsito de veículos, sem repararem que esse seu descuido
põe em perigo a vida própria e alheia.
Todos tomem a peito considerar e
respeitar as relações sociais como um dos principais deveres do homem de
hoje. Com efeito, quanto mais o mundo se unifica, tanto mais as
obrigações dos homens transcendem os grupos particulares e se estendem
progressivamente a todo o mundo. O que só se poderá fazer se os
indivíduos e grupos cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as
virtudes morais e sociais, de maneira a tornarem-se realmente, com o
necessário auxílio da graça divina, homens novos e construtores duma
humanidade nova.
Responsabilidade e participação social
31. Para que cada homem possa cumprir
mais perfeitamente os seus deveres de consciência quer para consigo quer
em relação aos vários grupos de que é membro, deve-se ter o cuidado de
que todos recebam uma formação mais ampla, empregando-se para tal os
consideráveis meios de que hoje dispõe a humanidade. Antes de mais, a
educação dos jovens, de qualquer origem social, deve ser de tal maneira
organizada que suscite homens e mulheres não apenas cultos mas também de
forte personalidade, tão urgentemente exigidos pelo nosso tempo.
Mal poderá, contudo, o homem chegar a
este sentido de responsabilidade, se as condições de vida lhe não
permitirem tornar-se consciente da própria dignidade e responder à sua
vocação, empenhando-se no serviço de Deus e dos outros homens. Ora a
liberdade humana com frequência se debilita quando o homem cai em
extrema miséria, e degrada-se quando ele, cedendo às demasiadas
facilidades da vida, se fecha numa espécie de solidão dourada. Pelo
contrário, ela robustece-se quando o homem aceita as inevitáveis
dificuldades da vida social, assume as multiformes exigências da vida em
comum e se empenha no serviço da comunidade humana.
Deve, por isso, estimular-se em todos a
vontade de tomar parte nos empreendimentos comuns. E é de louvar o modo
de agir das nações em que a maior parte dos cidadãos participa, com
verdadeira liberdade, nos assuntos públicos. É preciso, porém, ter
sempre em conta a. situação real de cada povo e o necessário vigor da
autoridade pública. Mas para que todos os cidadãos se sintam inclinados
a participar na vida dos vários grupos de que se forma o corpo social, é
necessário que encontrem nesses grupos bens que os atraiam e os
predisponham ao serviço dos outros. Podemos legitimamente pensar que o
destino futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às
gerações vindoiras razões de viver e de esperar.
O Verbo encarnado e a solidariedade humana
32. Do mesmo modo que Deus não criou os
homens para viverem isolados, mas para se unirem em sociedade, assim
também Lhe «aprouve... santificar e salvar os homens não individualmente
e com exclusão de qualquer ligação mútua, mas fazendo deles um povo que
O reconhecesse em verdade e O servisse santamente»
(13). Desde o começo da história da salvação, Ele escolheu os homens não
só como indivíduos mas ainda como membros duma comunidade. Com efeito,
manifestando o seu desígnio, chamou a esses escolhidos o
«seu povo» (Ex. 3, 7-12), com o qual
estabeleceu aliança no Sinai (14).
Esta índole comunitária aperfeiçoa-se e
completa-se com a obra de Jesus Cristo. Pois o próprio Verbo encarnado
quis participar da vida social dos homens. Tomou parte nas bodas de
Caná, entrou na casa de Zaqueu, comeu com os publicanos e pecadores.
Revelou o amor do Pai e a sublime vocação dos homens, evocando
realidades sociais comuns e servindo-se de modos de falar e de imagens
da vida de todos os dias. Santificou os laços sociais e antes de mais os
familiares, fonte da vida social; e submeteu-se livremente às leis do
seu país. Quis levar a vida dum operário do seu tempo e da sua terra.
Na sua pregação claramente mandou aos
filhos de Deus que se tratassem como irmãos. E na sua oração pediu que
todos os seus discípulos fossem «um». Ele próprio se ofereceu à morte
por todos, de todos feito Redentor. «Não há maior amor do que dar alguém
a vida pelos seus amigos» (Jo. 15, 13). E mandou aos Apóstolos pregar a
todos a mensagem evangélica para que a humanidade se tornasse a família
de Deus, na qual o amor fosse toda a lei.
Primogénito entre muitos irmãos,
estabeleceu, depois da sua morte e ressurreição, com o dom do seu
Espírito, uma nova comunhão fraterna entre todos os que O recebem com fé
e caridade, a saber, na Igreja, que é o seu corpo, no qual todos,
membros uns dos outros, se prestam mùtuamente serviço segundo os
diversos dons a cada um concedidos.
Esta solidariedade deve crescer sem
cessar, até se consumar naquele dia em que os homens, salvos pela graça,
darão perfeita glória a Deus, como família amada do Senhor e de Cristo
seu irmão.
CAPÍTULO III
A ACTIVIDADE HUMANA
NO MUNDO
Problema do sentido da actividade humana
33. Sempre o homem procurou, com o seu
trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida; hoje, porém,
sobretudo graças à ciência e à técnica, estendeu o seu domínio à
natureza inteira, e continuamente o aumenta; e a família humana,
sobretudo devido ao aumento de múltiplos meios de comunicação entre as
nações, vai-se descobrindo e organizando progressivamente como uma só
comunidade espalhada pelo mundo inteiro. Acontece assim que muitos bens
que o homem noutro tempo esperava sobretudo das forças superiores, os
alcança hoje por seus próprios meios.
Muitas são as questões que se levantam
entre os homens, perante este imenso empreendimento, que já atingiu o
inteiro género humano. Qual o sentido e valor desta actividade? Como se
devem usar estes bens? Para que fim tendem os esforços dos indivíduos e
das sociedades? Guarda do depósito da palavra divina, onde se vão buscar
os princípios da ordem religiosa e moral, a Igreja, embora nem sempre
tenha uma resposta já pronta para cada uma destas perguntas, deseja, no
entanto, juntar a luz da revelação à competência de todos os homens,
para que assim receba luz o caminho recentemente empreendido pela
humanidade.
Valor da actividade humana
34. Uma coisa é certa para os crentes: a
actividade humana individual e colectiva, aquele imenso esforço com que
os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de
vida, corresponde à vontade de Deus. Pois o homem, criado à imagem de
Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém
e governar o mundo na justiça e na santidade(1) e, reconhecendo Deus
como Criador universal, orientar-se a si e ao universo para Ele; de
maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, seja glorificado
em toda a terra o nome de Deus (2).
Isto aplica-se também às actividades de
todos os dias. Assim, os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento
para si e suas famílias, de tal modo exercem a própria actividade que
prestam conveniente serviço à sociedade, com razão podem considerar que
prolongam com o seu trabalho a obra do Criador, ajudam os seus irmãos e
dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na
história (3).
Longe de pensar que as obras do engenho
e poder humano se opõem ao poder de Deus, ou de considerar a criatura
racional como rival do Criador, os cristãos devem, pelo contrário, estar
convencidos de que as vitórias do género humano manifestam a grandeza de
Deus e são fruto do seu desígnio inefável. Mas, quanto mais aumenta o
poder dos homens, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e
comunitária. Vê-se, portanto, que a mensagem cristã não afasta os homens
da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desatender o bem dos seus
semelhantes, mas que, antes, os obriga ainda mais a realizar essas
actividades (4).
Ordenação da actividade humana
35. A actividade humana, do mesmo modo
que procede do homem, assim para ele se ordena. De facto, quando age, o
homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si
mesmo. Aprende muitas coisas, desenvolve as próprias faculdades, sai de
si e eleva-se sobre si mesmo. Este desenvolvimento, bem compreendido,
vale mais do que os bens externos que se possam conseguir. O homem vale
mais por aquilo que é do que por aquilo que tem (5). Do mesmo modo, tudo
o que o homem faz para conseguir mais justiça, mais fraternidade, uma
organização mais humana das relações sociais, vale mais do que os
progressos técnicos. Pois tais progressos podem proporcionar a base
material para a promoção humana, mas, por si sós, são incapazes de a
realizar.
A norma da actividade humana é pois a
seguinte: segundo o plano e vontade de Deus, ser conforme com o
verdadeiro bem da humanidade e tornar possível ao homem, individualmente
considerado ou em sociedade, cultivar e realizar a sua vocação integral.
Justa autonomia das realidades terrestres
36. No entanto, muitos dos nossos
contemporâneos parecem temer que a íntima ligação entre a actividade
humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens,
das sociedades ou das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas
se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e
valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e
organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de
ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo
inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do
próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade,
bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os
métodos peculiares de cada ciência e arte. Por esta razão, a
investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo
de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca
será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm
origem no mesmo Deus (6). Antes, quem se esforça com humildade e
constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso
não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual
sustenta as coisas e as faz ser o que são. Seja permitido, por isso,
deplorar certas atitudes de espírito que não faltaram entre os mesmos
cristãos, por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia da
ciência e que, pelas disputas e controvérsias a que deram origem,
levaram muitos espíritos a pensar que a fé e a ciência eram
incompatíveis (7).
Se, porém, com as palavras «autonomia
das realidades temporais» se entende
que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem
as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a
falsidade de tais assertos. Pois, sem o Criador, a criatura não
subsiste. De resto, todos os crentes, de qualquer religião, sempre
souberam ouvir a sua voz e manifestação na linguagem das criaturas.
Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece.
A actividade humana viciada pelo pecado
37. A Sagrada Escritura, confirmada pela
experiência dos séculos, ensina à família humana que o progresso humano,
tão grande bem para o homem, traz consigo também uma grande tentação:
perturbada a ordem de valores e misturado o bem com o mal, os homens e
os grupos consideram apenas o que é seu, esquecendo o dos outros. Deixa
assim o mundo de ser um lugar de verdadeira fraternidade, enquanto que o
acrescido dos homens ameaça já destruir o próprio género humano.
Um duro combate contra os poderes das
trevas atravessa, com efeito. toda a história humana; começou no
princípio do mundo e, segundo a palavra do Senhor (8), durará até ao
último dia. Inserido nesta luta, o homem deve combater constantemente,
se quer ser fiel ao bem; e só com grandes esforços e a ajuda da graça de
Deus conseguirá realizar a sua própria unidade.
Por isso, a Igreja de Cristo, confiando
no desígnio do Criador, ao mesmo tempo que reconhece que o progresso
humano pode servir para a verdadeira felicidade dos homens, não pode
deixar de repetir aquela palavra do Apóstolo:
«não vos conformeis com este mundo»
(Rom. 12, 2), isto é, com aquele espírito de vaidade e malícia que
transforma a actividade humana, destinada ao serviço de Deus e do homem,
em instrumento de pecado.
E se alguém quer saber de que maneira se
pode superar esta situação miserável, os cristãos professam que todas as
actividades humanas, constantemente ameaçadas pela soberba e amor
próprio desordenado, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela
cruz e ressurreição de Cristo. Porque, remido por Cristo e tornado nova
criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar até as coisas
criadas por Deus. Pois recebeu-as de Deus e considera-as e respeita-as
como vindas da mão do Senhor. Dando por elas graças ao benfeitor e
usando e aproveitando as criaturas em pobreza e liberdade de espírito, é
introduzido no verdadeiro senhorio do mundo, como quem nada tem e tudo
possui (9). «Todas as coisas são
vossas; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus» (1 Cor. 3, 22-23).
A actividade humana aperfeiçoada na Encarnação e
no mistério pascal
38. O Verbo de Deus, pelo qual todas as
coisas foram feitas, fazendo-se homem e vivendo na terra dos homens
(10), entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a e
recapitulando-a (11). Ele revela-nos que «Deus
é amor» (1 Jo. 4, 8) e ensina-nos ao mesmo tempo que a lei fundamental
da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo, é o novo
mandamento do amor. Dá, assim, aos que acreditam no amor de Deus, a
certeza de que o caminho do amor está aberto para todos e que o esforço
por estabelecer a universal fraternidade não é vão. Adverte, ao mesmo
tempo, que este amor não se deve exercitar apenas nas coisas grandes,
mas, antes de mais, nas circunstâncias ordinárias da vida. Suportando a
morte por todos nós pecadores (12), ensina-nos com o seu exemplo que
também devemos levar a cruz que a carne e o mundo fazem pesar sobre os
ombros daqueles que buscam a paz e a justiça. Constituído Senhor pela
sua ressurreição, Cristo, a quem foi dado todo o poder no céu e na terra
(13), actua já pela força do Espírito Santo nos corações dos homens; não
suscita neles apenas o desejo da vida futura, mas, por isso mesmo,
anima, purifica e fortalece também aquelas generosas aspirações que
levam a humanidade a tentar tornar a vida mais humana e a submeter para
esse fim toda a terra. Sem dúvida, os dons do Espírito são diversos:
enquanto chama alguns a darem claro testemunho do desejo da pátria
celeste e a conservarem-no vivo no seio da família humana, chama outros
a dedicarem-se ao serviço terreno dos homens, preparando com esta sua
actividade como que a matéria do reino dos céus. Liberta, porém, a
todos, para que, deixando o amor próprio e empregando em favor da vida
humana todas as energias terrenas, se lancem para o futuro, em que a
humanidade se tornará oblação agradável a Deus (14).
O penhor desta esperança e o viático
para este caminho deixou-os o Senhor aos seus naquele sacramento da fé,
em que os elementos naturais, cultivados pelo homem, se convertem no
Corpo e Sangue gloriosos, na ceia da comunhão fraterna e na prelibação
do banquete celeste.
A nova terra e o novo céu
39. Ignoramos o tempo em que a terra e a
humanidade atingirão a sua plenitude (15), e também não sabemos que
transformação sofrerá o universo. Porque a figura deste mundo, deformada
pelo pecado, passa certamente (16), mas Deus ensina-nos que se prepara
uma nova habitação e uma nova terra, na qual reina a justiça (17) e cuja
felicidade satisfará e superará todos os desejos de paz que se levantam
no coração dos homens (18). Então, vencida a morte, os filhos de Deus
ressuscitarão em Cristo e aquilo que foi semeado na fraqueza e
corrupção, revestir-se-á de incorruptibilidade (19); permanecendo a
caridade e as suas obras (20), todas as criaturas que Deus criou para o
homem serão libertadas da escravidão da vaidade (21).
É certo que é-nos lembrado que de nada
serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se a si mesmo se vem a perder
(22). A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas
antes activar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde
cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma
certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o progresso
terreno se deva cuidadosamente distinguir do crescimento do reino de
Cristo, todavia, na medida em que pode contribuir para a melhor
organização da sociedade humana, interessa muito ao reino de Deus (23).
Todos estes valores da dignidade humana,
da comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso
trabalho, depois de os termos difundido na terra, no Espírito do Senhor
e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então
purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando
Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal: «reino de verdade e
de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de
paz» (24). Sobre a terra, o reino já está misteriosamente presente;
quando o Senhor vier, atingirá a perfeição.
CAPÍTULO IV
A FUNÇÃO DA IGREJA
NO MUNDO ACTUAL
Relação mútua entre a Igreja e o mundo
40. Tudo quanto dissemos acerca da
dignidade da pessoa humana, da comunidade dos homens, do significado
profundo da actividade humana, constitui o fundamento das relações entre
a Igreja e o mundo e a base do seu diálogo recíproco(1). Pelo que, no
presente capítulo, pressupondo tudo o que o Concílio já declarou acerca
do mistério da Igreja, considerar-se-á a mesma Igreja enquanto existe
neste mundo e com ele vive e actua.
A Igreja, que tem a sua origem no amor
do eterno Pai (2), foi fundada, no tempo, por Cristo Redentor, e
reune-se no Espírito Santo (3), tem um fim salvador e escatológico, o
qual só se poderá atingir plenamente no outro mundo. Mas ela existe já
actualmente na terra, composta de homens que são membros da cidade
terrena e chamados a formar já na história humana a família dos filhos
de Deus, a qual deve crescer continuamente até à vinda do Senhor. Unida
em vista dos bens celestes e com eles enriquecida, esta família foi por
Cristo «constituída e organizada como sociedade neste mundo» (4),
dispondo de «convenientes meios de unidade visível e social» (5). Deste
modo, a Igreja, simultâneamente «agrupamento visível e comunidade
espiritual» (6), caminha juntamente com toda a humanidade, participa da
mesma sorte terrena do mundo e é como que o fermento e a alma da
sociedade humana (7), a qual deve ser renovada em Cristo e transformada
em família de Deus.
Esta compenetração da cidade terrena com
a celeste só pela fé se pode perceber; mais, ela permanece o mistério da
história humana, sempre perturbada pelo pecado, enquanto não chega a
plena manifestação da glória dos filhos de Deus. Procurando o seu fim
salvífico, a Igreja não se limita a comunicar ao homem a vida divina;
espalha sobre todo o mundo os reflexos da sua luz, sobretudo enquanto
cura e eleva a dignidade da pessoa humana, consolida a coesão da
sociedade e dá um sentido mais profundo à quotidiana actividade dos
homens. A Igreja pensa, assim, que por meio de cada um dos seus membros
e por toda a sua comunidade, muito pode ajudar para tornar mais humana a
família dos homens e a sua história.
Além disso, a Igreja católica aprecia
grandemente a contribuição que as outras igrejas cristãs ou comunidades
eclesiais têm dado e continuam a dar para a consecução do mesmo fim. E
está também firmemente persuadida de que pode receber muita ajuda, de
vários modos, do mundo, pelas qualidades e acção dos indivíduos e das
sociedades, na preparação do Evangelho. Expõem-se, a seguir, alguns
princípios gerais para promover convenientemente o intercâmbio e ajuda
recíproca entre a Igreja e o mundo, nos domínios que são de algum modo
comuns a ambos.
Ajuda que a Igreja oferece ao homem
41. O homem actual está a caminho de um
desenvolvimento mais pleno da personalidade e uma maior descoberta e
afirmação dos próprios direitos. Tendo a Igreja, por sua parte, a missão
de manifestar o mistério de Deus, último fim do homem, ela descobre ao
mesmo tempo ao homem o sentido da sua existência, a verdade profunda à
cerca dele mesmo. A Igreja sabe muito bem que só Deus, a quem serve,
pode responder às aspirações mais profundas do coração humano, que nunca
plenamente se satisfaz com os alimentos terrestres. Sabe também que o
homem, solicitado pelo Espírito de Deus, nunca será totalmente
indiferente ao problema religioso, como o confirmam não só a experiência
dos tempos passados, mas também inúmeros testemunhos do presente. Com
efeito, o homem sempre desejará saber, ao menos confusamente, qual é o
significado da sua vida, da sua actividade e da sua morte. E a própria
presença da Igreja lhe traz à mente estes problemas. Mas só Deus, que
criou o homem à sua imagem e o remiu, dá plena resposta a estas
perguntas, pela revelação em Cristo seu Filho feito homem. Aquele que
segue Cristo, o homem perfeito, torna-se mais homem.
Apoiada nesta fé, a Igreja pode subtrair
a dignidade da natureza humana a quaisquer flutuações de opiniões, por
exemplo, as que rebaixam exageradamente o corpo humano ou, pelo
contrário, o exaltam sem medida. Nenhuma lei humana pode salvaguardar
tão perfeitamente a dignidade pessoal e a liberdade do homem como o
Evangelho de Cristo, confiado à Igreja. Pois este Evangelho anuncia e
proclama a liberdade dos filhos de Deus; rejeita toda a espécie de
servidão, a qual tem a sua última origem no pecado (8); respeita
escrupulosamente a dignidade da consciência e a sua livre decisão; sem
descanso recorda que todos os talentos humanos devem redundar em serviço
de Deus e bem dos homens; e a todos recomenda, finalmente, a caridade
(9). É o que corresponde à lei fundamental da economia cristã. Porque,
embora seja o mesmo Deus o Criador e o Salvador, o senhor da história
humana e o da história da salvação, todavia, segundo a ordenação divina,
a justa autonomia das criaturas e sobretudo do homem, não só não é
delimitada mas antes é restituída à sua dignidade e nela confirmada.
Por isso, a Igreja, em virtude do
Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos do homem e
reconhece e tem em grande apreço o dinamismo do nosso tempo, que por
toda a parte promove tais direitos. Este movimento, porém, deve ser
penetrado pelo espírito do Evangelho, e defendido de qualquer espécie de
falsa autonomia. Pois estamos sujeitos à tentação de julgar que os
nossos direitos pessoais só são plenamente assegurados quando nos
libertamos de toda a norma da lei divina. Enquanto que, por este
caminho, a dignidade da pessoa humana, em vez de se salvar, perde-se.
Ajuda que a Igreja oferece à sociedade
42. A unidade da família humana recebe
um grande reforço e encontra o seu acabamento na unidade da família dos
filhos de Deus -. Certamente, a missão própria confiada por Cristo à sua
Igreja, não é de ordem política, económica ou social: o fim que lhe
propôs é, com efeito, de ordem religiosa (11). Mas desta mesma missão
religiosa deriva um encargo, uma luz e uma energia que podem servir para
o estabelecimento e consolidação da comunidade humana segundo a lei
divina. E também, quando for necessário, tendo em conta as
circunstâncias de tempos e lugares, pode ela própria, e até deve,
suscitar obras destinadas ao serviço de todos, sobretudo dos pobres,
tais como obras caritativas e outras semelhantes.
A Igreja reconhece, além disso, tudo o
que há de bom no dinamismo social hodierno; sobretudo o movimento para a
unidade, o processo duma sã socialização e associação civil e económica.
Promover a unidade é, efectivamente, algo que se harmoniza com a missão
essencial da Igreja, pois ela é, «em Cristo, como que o sacramento ou
sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o
género humano» (12). Ela própria manifesta assim ao mundo que a
verdadeira união social eterna flui da união dos espíritos e dos
corações, daquela fé e caridade em que indissolùvelmente se funda, no
Espírito Santo, a sua própria unidade. Porque a energia que a Igreja
pode insuflar à sociedade actual consiste nessa fé e caridade
efectivamente vividas e não em qualquer domínio externo, actuado com
meios puramente humanos.
Além disso, dado que a Igreja não está
ligada, por força da sua missão e natureza, a nenhuma forma particular
de cultura ou sistema político, económico ou social, pode, graças a esta
sua universalidade, constituir um laço muito estreito entre as diversas
comunidades e nações, contanto que nela confiem e lhe reconheçam a
verdadeira liberdade para cumprir esta sua missão. Por esta razão, a
Igreja recomenda a todos os seus filhos, e também a todos os homens, que
superem com este espírito de família próprio dos filhos de Deus, todos
os conflitos entre nações e raças, e consolidem internamente as
legítimas associações humanas.
O Concílio considera com muito respeito
o que há de bom, verdadeiro e justo nas instituições tão diversas que o
género humano criou e sem cessar continua a criar. E a Igreja declara
querer ajudar e promover todas essas instituições, na medida em que isso
dela dependa e seja compatível com a sua própria missão. Ela nada deseja
mais ardentemente do que, servindo o bem de todos, poder desenvolver-se
livremente sob qualquer regime que reconheça os direitos fundamentais da
pessoa e da família e os imperativos do bem comum.
Ajuda que a Igreja oferece à atividade humana
43. O Concílio exorta os cristãos,
cidadãos de ambas as cidades, a que procurem cumprir fielmente os seus
deveres terrenos, guiados pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da
verdade os que, sabendo que não temos aqui na terra uma cidade
permanente, mas que vamos em demanda da futura (13), pensam que podem
por isso descuidar os seus deveres terrenos, sem atenderem a que a
própria fé ainda os obriga mais a cumpri-los, segundo a vocação própria
de cada um (14). Mas não menos erram os que, pelo contrário, opinam
poder entregar-se às ocupações terrenas, como se estas fossem
inteiramente alheias à vida religiosa, a qual pensam consistir apenas no
cumprimento dos actos de culto e de certos deveres morais. Este divórcio
entre a fé que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve ser
contado entre os mais graves erros do nosso tempo. Já no Antigo
Testamento os profetas denunciam este escândalo (15); no Novo, Cristo
ameaçou-o ainda mais veementemente com graves castigos (16). Não se
oponham, pois, infundadamente, as actividades profissionais e sociais,
por um lado, e a vida religiosa, por outro. O cristão que descuida os
seus deveres temporais, falta aos seus deveres para com o próximo e até
para com o próprio Deus, e põe em risco a sua salvação eterna. A exemplo
de Cristo que exerceu um mister de operário, alegrem-se antes os
cristãos por poderem exercer todas as actividades terrenas, unindo numa
síntese vital todos os seus esforços humanos, domésticos, profissionais,
científicos ou técnicos com os valores religiosos, sob cuja elevada
ordenação, tudo se coordena para glória de Deus.
As tarefas e actividades seculares
competem como próprias, embora não exclusivamente, aos leigos. Por esta
razão, sempre que, sós ou associados, actuam como cidadãos do mundo, não
só devem respeitar as leis próprias de cada domínio, mas procurarão
alcançar neles uma real competência. Cooperarão de boa vontade com os
homens que prosseguem os mesmos fins. Reconhecendo quais são as
exigências da fé, e por ela robustecidos, não hesitem, quando for
oportuno, em idear novas iniciativas e levá-las a realização. Compete à
sua consciência prèviamente bem formada, imprimir a lei divina na vida
da cidade terrestre. Dos sacerdotes, esperem os leigos a luz e força
espiritual. Mas não pensem que os seus pastores estão sempre de tal modo
preparados que tenham uma solução pronta para qualquer questão, mesmo
grave, que surja, ou que tal é a sua missão. Antes, esclarecidos pela
sabedoria cristã, e atendendo à doutrina do magistério (17), tomem por
si mesmos as próprias responsabilidades.
Muitas vezes, a concepção cristã da vida
incliná-los-á para determinada solução, em certas circunstâncias
concretas. Outros fiéis, porém, com não menos sinceridade, pensarão
diferentemente acerca do mesmo assunto, como tantas vezes acontece, e
legitimamente. Embora as soluções propostas por uma e outra parte, mesmo
independentemente da sua intenção, sejam por muitos fàcilmente
vinculadas à mensagem evangélica, devem, no entanto, lembrar-se de que a
ninguém é permitido, em tais casos, invocar exclusivamente a favor da
própria opinião a autoridade da Igreja. Mas procurem sempre
esclarecer-se mutuamente, num diálogo sincero, salvaguardando a caridade
recíproca e atendendo, antes de mais, ao bem comum.
Os leigos, que devem tomar parte activa
em toda a vida da Igreja, não devem apenas impregnar o mundo com o
espírito cristão, mas são também chamados a serem testemunhas de Cristo,
em todas as circunstâncias, no seio da comunidade humana.
Quanto aos Bispos, a quem está confiado
o encargo de governar a Igreja de Deus, preguem juntamente com os seus
sacerdotes a mensagem de Cristo de tal maneira que todas as actividades
terrenas dos fiéis sejam penetradas pela luz do Evangelho. Lembrem-se,
além disso, os pastores que, com o seu comportamento e solicitude
quotidanos (18), manifestam ao mundo o rosto da Igreja com base no qual
os homens julgam da força e da verdade da mensagem cristã. Com a sua
vida e palavra, juntos com os religiosos e os seus fiéis, mostrem que a
Igreja, com todos os dons que contém em si, é só pela sua simples
presença uma fonte inexaurível daquelas virtudes de que tanto necessita
o mundo de hoje. Por meio de assíduo estudo, tornem-se capazes de tomar
parte no diálogo com o mundo e com os homens de qualquer opinião. Mas
sobretudo, tenham no seu coração as palavras deste Concílio: «Dado que o
género humano caminha hoje cada vez mais para a unidade civil, económica
e social, tanto mais necessário é que os sacerdotes em conjunto e sob a
direcção dos Bispos e do Sumo Pontífice, evitem todo o motivo de
divisão, para que a humanidade toda seja conduzida à unidade da família
de Deus» (19).
Ainda que a Igreja, pela virtude do
Espírito Santo, se tenha mantido esposa fiel do Senhor e nunca tenha
deixado de ser um sinal de salvação no mundo, no entanto, ela não ignora
que entre os seus membros (20), clérigos ou leigos, não faltaram, no
decurso de tantos séculos, alguns que foram infiéis ao Espírito de Deus.
E também nos nossos dias, a Igreja não deixa de ver quanta distância
separa a mensagem por ela proclamada e a humana fraqueza daqueles a quem
foi confiado o Evangelho. Seja qual for o juízo da história acerca
destas deficiências, devemos delas ter consciência e combatê-las com
vigor, para que não sejam obstáculo à difusão, do Evangelho. Também sabe
a Igreja quanto deve aprender com a experiência dos séculos, no que se
refere ao desenvolvimento das suas relações com o mundo. Conduzida pelo
Espírito Santo, a Igreja mãe «exorta sem cessar os seus filhos a que se
purifiquem e renovem, para que o sinal de Cristo brilhe mais claramente
no rosto da Igreja» (21).
Ajuda que a Igreja recebe do mundo
44. Assim como é do interesse do mundo
que ele reconheça a Igreja como realidade social da história e seu
fermento, assim também a Igreja não ignora quanto recebeu da história e
evolução do género humano.
A experiência dos séculos passados, os
progressos científicos, os tesoiros encerrados nas várias formas de
cultura humana, os quais manifestam mais plenamente a natureza do homem
e abrem novos caminhos para a verdade, aproveitam igualmente à Igreja.
Ela aprendeu, desde os começos da sua história, a formular a mensagem de
Cristo por meio dos conceitos e línguas dos diversos povos, e procurou
ilustrá-la com o saber filosófico. Tudo isto com o fim de adaptar o
Evangelho à capacidade de compreensão de todos e às exigências dos
sábios. Esta maneira adaptada de pregar a palavra revelada deve
permanecer a lei de toda a evangelização. Deste modo, com efeito,
suscita-se em cada nação a possibilidade de exprimir a mensagem de
Cristo segundo a sua maneira própria, ao mesmo tempo que se fomenta um
intercâmbio vivo entre a Igreja e as diversas culturas dos diferentes
povos (22). Para aumentar este intercâmbio, necessita especialmente a
Igreja - sobretudo hoje, em que tudo muda tão ràpidamente e os modos de
pensar variam tanto - da ajuda daqueles que, vivendo no mundo, conhecem
bem o espírito e conteúdo das várias instituições e disciplinas, sejam
eles crentes ou não. É dever de todo o Povo de Deus e sobretudo dos
pastores e teólogos, com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir,
discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las
à luz da palavra de Deus, de modo que a verdade revelada possa ser cada
vez mais intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um
modo conveniente.
Como a Igreja tem uma estrutura social
visível, sinal da sua unidade em Cristo, pode também ser enriquecida, e
de facto o é, com a evolução da vida social. Não porque falte algo na
constituição que Cristo lhe deu, mas para mais profundamente a conhecer
e melhor a exprimir e para a adaptar mais convenientemente aos nossos
tempos. Ela verifica com gratidão que, tanto no seu conjunto como em
cada um dos seus filhos, recebe variadas ajudas dos homens de toda a
classe e condição. Na realidade, todos os que, de acordo com a vontade
de Deus, promovem a comunidade humana no plano familiar, cultural, da
vida económica e social e também política, seja nacional ou
internacional, prestam não pequena ajuda à comunidade eclesial, na
medida em que esta depende das realidades exteriores.
Mais ainda, a Igreja reconhece que muito
aproveitou e pode aproveitar da própria oposição daqueles que a
hostilizam e perseguem (23).
Jesus Cristo Alfa e Omega
45. Ao ajudar o mundo e recebendo dele
ao mesmo tempo muitas coisas, o único fim da Igreja é o advento do reino
de Deus e o estabelecimento da salvação de todo o género humano. E todo
o bem que o Povo de Deus pode prestar à família dos homens durante o
tempo da sua peregrinação deriva do facto que a Igreja é o «sacramento
universal da salvação» (24), manifestando e actuando simultâneamente o
mistério do amor de Deus pelos homens.
Com efeito, o próprio Verbo de Deus, por
quem tudo foi feito, fez-se homem, para, homem perfeito, a todos salvar
e tudo recapitular. O Senhor é o fim da história humana, o ponto para
onde tendem os desejos da história e da civilização, o centro do género
humano, a alegria de todos os corações e a plenitude das suas aspirações
(25). Foi Ele que o Pai ressuscitou dos mortos, exaltou e colocou à sua
direita, estabelecendo-o juiz dos vivos e dos mortos. Vivificados e
reunidos no seu Espírito, caminhamos em direcção à consumação da
história humana, a qual corresponde plenamente ao seu desígnio de amor:
«recapitular todas as coisas em Cristo, tanto as do céu como as da
terra» (Ef. 1,10).
O próprio Senhor o diz: «Eis que venho
em breve, trazendo comigo a minha recompensa, para dar a cada um segundo
as suas obras. Eu sou o alfa e o ómega, o primeiro e o último, o começo
e o fim» (Apoc. 22, 12-13).
II PARTE
ALGUNS PROBLEMAS MAIS URGENTES
Atitude do Concílio perante esses
problemas
46. Depois de ter exposto a dignidade da
pessoa humana, bem como a missão individual e social que está chamada a
realizar no mundo, o Concílio dirige agora a atenção de todos, à luz do
Evangelho e da experiência humana, para algumas necessidades mais
urgentes do nosso tempo, que profundamente afectam a humanidade.
Entre as muitas questões que hoje a
todos preocupam, importa relevar particularmente as seguintes: o
matrimónio e a família, a cultura humana, a vida económico-social e
política, a comunidade internacional e a paz. Sobre cada uma delas devem
resplandecer os princípios e as luzes que provêm de Cristo e que
dirigirão os cristãos e iluminarão todos os homens na busca da solução
para tantos e tão complexos problemas.
CAPÍTULO I
A PROMOÇÃO DA
DIGNIDADE DO MATRIMÓNIO E DA FAMÍLIA
O matrimónio e a família no mundo actual
47. O bem-estar da pessoa e da sociedade
humana e cristã está intimamente ligado com uma favorável situação da
comunidade conjugal e familiar. Por esse motivo, os cristãos, juntamente
com todos os que têm em grande apreço esta comunidade, alegram-se
sinceramente com os vários factores que fazem aumentar entre os homens a
estima desta comunidade de amor e o respeito pela vida e que auxiliam os
cônjuges e os pais na sua sublime missão. Esperam daí ainda melhores
resultados e esforçam-se por os ampliar.
Porém, a dignidade desta instituição não
resplandece em toda a parte com igual brilho. Encontra-se obscurecida
pela poligamia, pela epidemia do divórcio, pelo chamado amor livre e
outras deformações. Além disso, o amor conjugal é muitas vezes profanado
pelo egoísmo, amor do prazer e por práticas ilícitas contra a geração. E
as actuais condições económicas, socio-psicológicas e civis introduzem
ainda na família não pequenas perturbações. Finalmente, em certas partes
do globo, verificam-se, com inquietação, os problemas postos pelo
aumento demográfico. Com tudo isto, angustiam-se as consciências. Mas o
vigor e a solidez da instituição matrimonial e familiar também nisto se
manifestam: as profundas transformações da sociedade contemporânea,
apesar das dificuldades a que dão origem, muito frequentemente revelam
de diversos modos a verdadeira natureza de tal instituição.
Por tal motivo, o Concílio, esclarecendo
alguns pontos da doutrina da Igreja, deseja ilustrar e robustecer os
cristãos e todos os homens que se esforçam por proteger e fomentar a
nativa dignidade do estado matrimonial e o seu alto e sagrado valor.
A santidade do matrimónio e da
família
48. A íntima comunidade da vida e do
amor conjugal, fundada pelo Criador e dotada de leis próprias, é
instituída por meio da aliança matrimonial, eu seja pelo irrevogável
consentimento pessoal. Deste modo, por meio do acto humano com o qual os
cônjuges mùtuamente se dão e recebem um ao outro, nasce uma instituição
também à face da sociedade, confirmada pela lei divina. Em vista do bem
tanto dos esposos e da prole como da sociedade, este sagrado vínculo não
está ao arbítrio da vontade humana. O próprio Deus é o autor do
matrimónio, o qual possui diversos bens e fins,(1) todos eles da máxima
importância, quer para a propagação do género humano, quer para o
proveito pessoal e sorte eterna de cada um dos membros da família, quer
mesmo, finalmente, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade de
toda a família humana. Por sua própria índole, a instituição matrimonial
e o amor conjugal estão ordenados para a procriação e educação da prole,
que constituem como que a sua coroa. O homem e a mulher, que, pela
aliança conjugal «já não são dois, mas uma só carne» (Mt. 19, 6),
prestam-se recíproca ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas
e actividades, tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a
realizam. Esta união íntima, já que é o dom recíproco de duas pessoas,
exige, do mesmo modo que o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos
cônjuges e a indissolubilidade da sua união (2).
Cristo Senhor abençoou copiosamente este
amor de múltiplos aspectos, nascido da fonte divina da caridade e
constituído à imagem da sua própria união com a Igreja. E assim como
outrora Deus veio ao encontro do seu povo com uma aliança de amor e
fidelidade (3), assim agora o Salvador dos homens e esposo da Igreja (4)
vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimónio. E
permanece com eles, para que, assim como Ele amou a Igreja e se entregou
por ela (5), de igual modo os cônjuges, dando-se um ao outro, se amem
com perpétua fidelidade. O autêntico amor conjugal é assumido no amor
divino, e dirigido e enriquecido pela força redentora de Cristo e pela
acção salvadora da Igreja, para que, assim, os esposos caminhem
eficazmente para Deus e sejam ajudados e fortalecidos na sua missão
sublime de pai e mãe(6). Por este motivo, os esposos cristãos são
fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado
por meio de um sacramento especial (7); cumprindo, graças à força deste,
a própria missão conjugal e familiar, penetrados do espírito de Cristo
que impregna toda a sua vida de fé, esperança e caridade, avançam sempre
mais na própria perfeição e mútua santificação e cooperam assim juntos
para a glorificação de Deus.
Precedidos assim pelo exemplo e oração
familiar dos pais, tanto os filhos como todos os que vivem no círculo
familiar encontrarão mais fàcilmente o caminho da existência humana, da
salvação e da santidade. Quanto aos esposos, revestidos com a dignidade
e o encargo da paternidade e maternidade, cumprirão diligentemente o seu
dever de educação, sobretudo religiosa, que a eles cabe em primeiro
lugar. Os filhos, como membros vivos dá família, contribuem a seu modo
para a santificação dos pais. Corresponderão, com a sua gratidão,
piedade filial e confiança aos benefícios recebidos dos pais e
assisti-los-ão, como bons filhos, nas dificuldades e na solidão da
velhice. A viuvez, corajosamente assumida na sequência da vocação
conjugal, por todos deve ser respeitada (8). Cada família comunicará
generosamente com as outras as próprias riquezas espirituais. Por isso,
a família cristã, nascida de um matrimónio que é imagem e participação
da aliança de amor entre Cristo e a Igreja (9), manifestará a todos a
presença viva do Salvador no mundo e a autêntica natureza da Igreja,
quer por meio do amor dos esposos, quer pela sua generosa fecundidade,
unidade e fidelidade, quer pela amável cooperação de todos os seus
membros.
O amor conjugal
49. A Palavra de Deus convida repetidas
vezes os noivos a alimentar e robustecer o seu noivado com um amor
casto, e os esposos a sua união com um amor indiviso (10). E também
muitos dos nossos contemporâneos têm em grande apreço o verdadeiro amor
entre marido e mulher, manifestado de diversas maneiras, de acordo com
os honestos costumes dos povos e dos tempos. Esse amor, dado que é
eminentemente humano - pois vai de pessoa a pessoa com um afecto
voluntário - compreende o bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode
conferir especial dignidade às manifestações do corpo e do espírito,
enobrecendo-as como elementos e sinais peculiares do amor conjugal. E o
Senhor dignou-se sanar, aperfeiçoar e elevar este amor com um dom
especial de graça e caridade. Unindo o humano e o divino, esse amor leva
os esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a
ternura do afecto e, com as obras, e penetra toda a sua vida (11); e
aperfeiçoa-se e aumenta pela sua própria generosa actuação. Ele
transcende, por isso, de longe a mera inclinação erótica, a qual,
fomentada egoìsticamente, rápida e miseràvelmente se desvanece.
Este amor tem a sua expressão e
realização peculiar no acto próprio do matrimónio. São, portanto,
honestos e dignos os actos pelos quais os esposos se unem em intimidade
e pureza; realizados de modo autênticamente humano, exprimem e alimentam
a mútua entrega pela qual se enriquecem um ao outro na alegria e
gratidão. Esse amor, ratificado pela promessa de ambos e, sobretudo,
sancionado pelo sacramento de Cristo, é indissolùvelmente fiel, de corpo
e de espírito, na prosperidade e na adversidade; exclui, por isso, toda
e qualquer espécie de adultério e divórcio. A unidade do matrimónio,
confirmada pelo Senhor, manifesta-se também claramente na igual
dignidade da mulher e do homem que se deve reconhecer no mútuo e pleno
amor. Mas, para cumprir com perseverança os deveres desta vocação
cristã, requere-se uma virtude notável; por este motivo, hão-de os
esposos, fortalecidos pela graça para levarem uma vida de santidade,
cultivar assiduamente e impetrar com a oração a fortaleza do próprio
amor, a magnanimidade e o espírito de sacrifício.
O autêntico amor conjugal será mais
apreciado, e formar-se-á a seu respeito uma sã opinião pública, se os
esposos cristãos derem um testemunho eminente de fidelidade e harmonia e
de solicitude na educação dos filhos e se participarem na necessária
renovação cultural, psicológica e social em favor do casamento e da
família. Os jovens devem ser conveniente e oportunamente instruídos,
sobretudo no seio da própria família, acerca da dignidade, missão e
exercício do amor conjugal. Deste modo, educados na castidade, poderão,
chegada a idade conveniente, entrar no casamento depois dum noivado
puro.
A fecundidade do matrimônio
50. O matrimónio e o amor conjugal
ordenam-se por sua própria natureza à geração e educação da prole. Os
filhos são, sem dúvida, o maior dom do matrimónio e contribuem muito
para o bem dos próprios pais. O mesmo Deus que disse «não é bom que o
homem esteja só» (Gén. 2,88) e que «desde a origem fez o homem varão e
mulher» (Mt. 19,14), querendo comunicar-lhe uma participação especial na
Sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: «sede fecundos e
multiplicai-vos» (Gén. 1,28). Por isso, o autêntico cultivo do amor
conjugal, e toda a vida familiar que dele nasce, sem pôr de lado os
outros fins do matrimónio, tendem a que os esposos, com fortaleza de
ânimo, estejam dispostos a colaborar com o amor do criador e salvador,
que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família.
Os esposos sabem que no dever de
transmitir e educar a vida humana - dever que deve ser considerado como
a sua missão específica - eles são os cooperadores do amor de Deus
criador e como que os seus intérpretes. Desempenhar-se-ão, portanto,
desta missão com a sua responsabilidade humana e cristã; com um respeito
cheio de docilidade para com Deus, de comum acordo e com esforço comum,
formarão rectamente a própria consciência, tendo em conta o seu bem
próprio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem virão a nascer,
sabendo ver as condições de tempo e da própria situação e tendo,
finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade
temporal e da própria Igreja. São os próprios esposos que, em última
instância, devem diante de Deus tomar esta decisão. Mas, no seu modo de
proceder, tenham os esposos consciência de que não podem agir
arbitràriamente, mas que sempre se devem guiar pela consciência, que se
deve conformar com a lei divina, e ser dóceis ao magistério dia Igreja,
que autenticamente a interpreta à luz do Evangelho. Essa lei divina
manifesta a plena significação do amor conjugal, protege-o e estimula-o
para a sua perfeição autenticamente humana. Assim, os esposos cristãos,
confiados na divina Providência e cultivando o espírito de sacrifício
(12), dão glória ao Criador e caminham para a perfeição em Cristo quando
se desempenham do seu dever de procriar com responsabilidade generosa,
humana e cristã. Entre os esposos que deste modo satisfazem à missão que
Deus lhes confiou, devem ser especialmente lembrados aqueles que, de
comum acordo e com prudência, aceitam com grandeza de ânimo educar uma
prole numerosa (13).
No entanto, o matrimónio não foi
instituído só em ordem à procriação da prole. A própria natureza da
aliança indissolúvel entre as pessoas e o bem da prole exigem que o
mútuo amor dos esposos se exprima convenientemente, aumente e chegue à
maturidade. E por isso, mesmo que faltem os filhos, tantas vezes
ardentemente desejados, o matrimónio conserva o seu valor e
indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida.
O amor conjugal e o respeito pela vida humana
51. O Concílio não ignora que os
esposos, na sua vontade de conduzir harmònicamente a própria vida
conjugal, encontram frequentes dificuldades em certas circunstâncias da
vida actual; que se podem encontrar em situações em que, pelo menos
temporàriamente, não lhes é possível aumentar o número de filhos e em
que só dificilmente se mantêm a fidelidade do amor e a plena comunidade
de vida. Mas quando se suspende a intimidade da vida conjugal, não raro
se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole; porque,
nesse caso, ficam ameaçadas tanto a educação dos filhos como a coragem
necessária para ter mais filhos.
Não falta quem se atreva a dar soluções
imorais a estes problemas, sem recuar sequer perante o homicídio. Mas a
Igreja recorda que não pode haver verdadeira incompatibilidade entre as
leis divinas que regem a transmissão da vida e o desenvolvimento do
autêntico amor conjugal.
Com efeito, Deus, senhor da vida,
confiou aos homens, para que estes desempenhassem dum modo digno dos
mesmos homens, o nobre encargo de conservar a vida. Esta deve, pois, ser
salvaguardada, com extrema solicitude, desde o primeiro momento da
concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis. A índole
sexual humana e o poder gerador do homem, eles superam de modo admirável
o que se encontra nos graus inferiores da vida; daqui se segue que os
mesmos actos específicos da vida conjugal, realizados segundo a
autêntica dignidade humana, devem ser objecto de grande respeito. Quando
se trata, portanto, de conciliar o amor conjugal com a transmissão
responsável da vida, a moralidade do comportamento não depende apenas da
sinceridade da intenção e da apreciação dos motivos; deve também
determinar-se por critérios objectivos, tomados da natureza da pessoa e
dos seus actos; critérios que respeitem, num contexto de autêntico amor,
o sentido da mútua doação e da procriação humana. Tudo isto só é
possível se se cultivar sinceramente a virtude da castidade conjugal.
Segundo estes princípios, não é lícito aos filhos da Igreja adoptar, na
regulação dos nascimentos, caminhos que o magistério, explicitando a lei
divina, reprova (14).
Todos, finalmente, tenham bem presente
que a vida humana e a missão de a transmitir não se limitam a este
mundo, nem podem ser medidas ou compreendidas ùnicamente em função dele,
mas que estão sempre relacionadas com o eterno destino do homem.
O progresso e a promoção do matrimónio e da
família
52. A família é como que uma escola de
valorização humana. Para que esteja em condições de alcançar a plenitude
da sua vida e missão, exige, porém, a benévola comunhão de almas e o
comum acordo dos esposos, e a diligente cooperação dos pais na educação
dos filhos. A presença activa do pai contribui poderosamente para a
formação destes; mas é preciso assegurar também a assistência ao lar por
parte da mãe, da qual os filhos, sobretudo os mais pequenos, têm tanta
necessidade; sem descurar, aliás, a legítima promoção social da mulher.
Os filhos sejam educados de tal modo que, chegados à idade adulta, sejam
capazes de seguir com inteira responsabilidade a sua vocação, incluindo
a sagrada, e escolher um estado de vida; e, se casarem, possam
constituir uma família própria, em condições morais, sociais e
económicas favoráveis. Compete aos pais ou tutores guiar os jovens na
constituição da família com prudentes conselhos que eles devem ouvir de
bom grado; mas evitem cuidadosamente forçá-los, directa ou
indirectamente, a casar-se ou a escolher o cônjuge.
A família - na qual se congregam as
diferentes gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma
sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras
exigências da vida social - constitui assim o fundamento da sociedade. E
por esta razão, todos aqueles que têm alguma influência nas comunidades
e grupos sociais, devem contribuís eficazmente para a promoção do
matrimónio e da família. A autoridade civil há-de considerar como um
dever sagrado reconhecer, proteger e favorecer a sua verdadeira
natureza, assegurar a moralidade pública e fomentar a prosperidade
doméstica. Deve salvaguardar-se o direito de os pais gerarem e educarem
os filhos no seio da família. Protejam-se também e ajudem-se
convenientemente, por meio duma previdente legislação e com iniciativas
várias, aqueles que por infelicidade não beneficiam duma família.
Os cristãos, resgatando o tempo presente
(15), e distinguindo o que é eterno das formas mutáveis, promovam com
empenho o bem do matrimónio e da família, com o testemunho da própria
vida e cooperando com os homens de boa vontade; deste modo, superando as
dificuldades, proverão às necessidades e vantagens da família, de acordo
com os novos tempos. Para alcançar este fim, muito ajudarão o sentir
cristão dos fiéis, a rectidão de consciência moral dos homens, bem como
o saber e competência dos que se dedicam às ciências sagradas.
Os cientistas, particularmente os
especialistas nas ciências biológicas, médicas, sociais e psicológicas,
podem prestar um grande serviço para bem do matrimónio e da família se,
juntando os seus esforços, procurarem esclarecer mais profundamente as
condições que favorecem a honesta regulação da procriação humana.
Cabe aos sacerdotes, devidamente
informados acerca das realidades familiares, auxiliar a vocação dos
esposos na sua vida conjugal e familiar por vários meios pastorais, com
a pregação da palavra de Deus, o culto litúrgico e outras ajudas
espirituais; devem ainda fortalecê-los, com bondade e paciência, nas
suas dificuldades e reconfortá-los com a caridade, para que assim se
formem famílias verdadeiramente irradiantes.
As diferentes obras, sobretudo as
associações de famílias, procurem fortalecer com a doutrina e a acção os
jovens e os esposos, especialmente os casados de há pouco, e formá-los
para a vida familiar, social e apostólica.
Finalmente, os próprios esposos, feitos
à imagem de Deus e estabelecidos numa ordem verdadeiramente pessoal,
estejam unidos em comunhão de afecto e de pensamento e com mútua
santidade (16) de modo que, seguindo a Cristo, princípio da vida (17),
se tornem, pela fidelidade do seu amor, através das alegrias e
sacrifícios da sua vocação, testemunhas daquele mistério de amor que
Deus revelou ao mundo com a sua morte e ressurreição (18).
CAPÍTULO II
A CONVENIENTE
PROMOÇÃO DO PROGRESSO CULTURAL
A cultura e a sua relação com o homem
53. É próprio da pessoa humana
necessitar da cultura, isto é, de desenvolver os bens e valores da
natureza, para chegar a uma autêntica e plena realização. Por isso,
sempre que se trata da vida humana, natureza e cultura encontram-se
intimamente ligadas.
A palavra «cultura» indica, em geral,
todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as
múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por
dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais
humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a vida social,
quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do
tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que
sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes
experiências espirituais e as suas aspirações.
Daqui se segue que a cultura humana
implica necessàriamente um aspecto histórico e social e que o termo
«cultura» assume frequentemente um sentido sociológico e etnológico. É
neste sentido que se fala da pluralidade das culturas. Com efeito,
diferentes modos de usar das coisas, de trabalhar e de se exprimir, de
praticar a religião e de formar os costumes, de estabelecer leis e
instituições jurídicas, de desenvolver as ciências e as artes e de
cultivar a beleza, dão origem a diferentes estilos de vida e diversas
escalas de valores. E assim, a partir dos usos tradicionais, se
constitui o património de cada comunidade humana. Define-se também por
este modo o meio histórico determinado no qual se integra o homem raça
ou época, e do qual tira os bens necessários para a promoção da
civilização.
Secção 1
CONDIÇÕES DA CULTURA
NO MUNDO ACTUAL
Novos estilos de vida
54. As condições de vida do homem
moderno sofreram tão profunda transformação no campo social e cultural,
que é lícito falar duma nova era da história humana (1). Novos caminhos
se abrem assim ao progresso e difusão da cultura, preparados pelo imenso
avanço das ciências naturais, humanas e sociais, pelo desenvolvimento
das técnicas e pelo progresso no aperfeiçoamento e coordenação dos meios
de comunicação. Daqui provêm algumas notas características da cultura
actual: as chamadas ciências exactas desenvolvem grandemente o sentido
crítico; as recentes investigações psicológicas explicam profundamente a
actividade humana; as disciplinas históricas contribuem muito para
considerar as coisas sob o seu aspecto mutável e evolutivo; as maneiras
de viver e os costumes tornam-se cada vez mais uniformes; a
industrialização, a urbanização e outras causas que favorecem a vida
comunitária, criam novas formas de cultura de que resultam novas
maneiras de sentir e de agir e de utilizar o tempo livre; o aumento de
intercâmbio entre os vários povos e grupos sociais revela mais
amplamente a todos e a cada um os tesouros das várias formas de cultura,
preparando-se deste modo, progressivamente, um tipo mais universal de
cultura humana, a qual tanto mais favorecerá e expressará a unidade do
género humano, quanto melhor souber respeitar as peculiaridades das
diversas culturas.
O homem, autor da cultura
55. Cresce cada vez mais o número dos
homens e mulheres, de qualquer grupo ou nação, que têm consciência de
serem os artífices e autores da cultura da própria comunidade. Aumenta
também cada dia mais no mundo inteiro o sentido da autonomia e
responsabilidade, o qual é de máxima importância para a maturidade
espiritual e moral do género humano. O que aparece ainda mais
claramente, se tivermos diante dos olhos a unificação do mundo e o
encargo que nos incumbe de construirmos, na verdade e na justiça, um
mundo melhor. Somos assim testemunhas do nascer de um novo humanismo, no
qual o homem se define antes de mais pela sua responsabilidade com
relação aos seus irmãos e à história.
Antinomias da cultura actual e actuação do homem
56. Nestas condições, não é de admirar
que o homem, sentindo a responsabilidade que tem na promoção da cultura,
alimente mais dilatadas esperanças, e ao mesmo tempo encare com
inquietação as múltiplas antinomias existentes e que ele tem de
resolver.
Que se deve fazer para que os frequentes
contactos entre culturas, que deveriam levar os diferentes grupos e
culturas a um diálogo verdadeiro e fecundo, não perturbem a vida das
comunidades, ou subvertam a sabedoria dos antigos, ou ponham em perigo o
génio próprio de cada povo?
Como fomentar o dinamismo e expansão da
nova cultura, sem deixar perder a fidelidade viva à herança tradicional?
Problema que se põe com particular acuidade quando se trata de
harmonizar uma cultura nascida dum grande progresso das ciências e da
técnica com a que se alimenta dos estudos clássicos das diversas
tradições.
Como conciliar a rápida e progressiva
especialização das várias disciplinas com a necessidade de construir a
sua síntese e ainda de conservar no homem as capacidades de contemplação
e admiração que conduzem à sabedoria?
Que fazer para que todos os homens
participem dos bens culturais, uma vez que a cultura das elites é cada
vez mais elevada e complexa? Enfim, como reconhecer a legitimidade da
autonomia que a cultura reclama, sem cair num humanismo meramente
terreno ou até hostil à religião?
É preciso, que, no meio de todas estas
antinomias, a cultura humana progrida hoje de tal modo, que desenvolva
harmónica e integralmente a pessoa humana e ajude os homens no
desempenho das tarefas a que todos, e sobretudo os cristãos, estão
chamados, fraternalmente unidos numa única família humana.
Secção 2
ALGUNS PRINCÍPIOS
PARA A CONVENIENTE PROMOÇÃO DA CULTURA
Fé e cultura
57. Os cristãos, peregrinos da cidade
celestial, devem buscar e saborear as coisas do alto (2). Mas, com isso,
de modo algum diminui, antes aumenta a importância do seu dever de
colaborar com todos os outros homens na edificação dum mundo mais
humano. E, na verdade, o mistério da fé cristã fornece-lhes valiosos
estímulos e ajudas para cumprirem mais intensamente essa missão e
sobretudo para descobrirem o pleno significado de tal actividade,
assinalando assim o lugar privilegiado da cultura na vocação integral do
homem.
Quando o homem, usando as suas mãos ou
recorrendo à técnica, trabalha a terra para que ela produza frutos e se
torne habitação digna para toda a humanidade, ou quando participa
conscientemente na vida social dos diversos grupos, está a dar
realização à vontade que Deus manifestou no começo dos tempos, de que
dominasse a terra (3) e completasse a obra da criação, ao mesmo tempo
que se vai aperfeiçoando a si mesmo; cumpre igualmente o mandamento de
Cristo, de se consagrar ao serviço de seus irmãos.
Além disso, dedicando-se às várias
disciplinas da história, filosofia, ciências matemáticas e naturais, e
cultivando as artes, pode o homem ajudar muito a família humana a
elevar-se a concepções mais sublimes da verdade, do bem e da beleza e a
um juízo de valor universal, e ser assim luminosamente esclarecida por
aquela admirável sabedoria, que desde a eternidade estava junto de Deus,
dispondo com Ele todas as coisas, e encontrando as suas delícias em
estar com os filhos dos homens (4).
Pelo mesmo facto, o espírito do homem,
mais liberto da escravidão das coisas, pode mais fàcilmente levantar-se
ao culto e contemplação do Criador. Mais ainda, dispõe-se assim, sob o
impulso da graça, a reconhecer o Verbo de Deus, o qual antes de se fazer
homem para tudo salvar e em si recapitular, já «estava no mundo», como
«verdadeira luz que ilumina todo o
homem» (Jo. 1, 9-10) (5).
O progresso hodierno das ciências e das
técnicas que, em virtude do seu próprio método, não penetram até às
causas últimas das coisas, pode sem dúvida dar aso a certo fenomenismo e
agnosticismo, sempre que o método de investigação de que usam estas
disciplinas se arvora indevidamente em norma suprema de toda a
investigação da verdade. É mesmo de temer que o homem, fiando-se
demasiadamente nas descobertas actuais, julgue que se basta a si mesmo e
já não procure coisas mais altas.
Estas deploráveis manifestações não são,
porém, consequências necessárias da cultura actual, nem nos devem fazer
cair na tentação de desconhecer os seus valores positivos. Tais são,
entre outros: o gosto das ciências e a exacta objectividade nas
investigações científicas; a necessidade de colaborar com os outros nas
equipas técnicas; o sentido de solidariedade internacional; a
consciência cada vez mais nítida da responsabilidade que os sábios têm
de ajudar e até de proteger os homens; a vontade de tornar as condições
de vida melhores para todos e especialmente para aqueles que sofrem da
privação de responsabilidade ou de pobreza cultural. Tudo isto pode
constituir uma certa preparação para a recepção da mensagem evangélica,
preparação que pode ser informada com a caridade divina por Aquele que
veio para salvar o mundo.
A mensagem de Cristo e a cultura humana
58. Múltiplos laços existem entre a
mensagem da salvação e a cultura humana. Deus, com efeito, revelando-se
ao seu povo até à plena manifestação de Si mesmo no Filho encarnado,
falou segundo a cultura própria de cada época.
Do mesmo modo, a Igreja, vivendo no
decurso dos tempos em diversos condicionalismos, empregou os recursos
das diversas culturas para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de
Cristo, para a explicar, investigar e penetrar mais profundamente e para
lhe dar melhor expressão na celebração da Liturgia e na vida da
multiforme comunidade dos fiéis.
Mas, por outro lado, tendo sido enviada
aos homens de todos os tempos e lugares, a Igreja não está exclusiva e
indissolùvelmente ligada . a nenhuma raça ou nação, a nenhum género de
vida particular, a nenhuma tradição, antiga ou moderna. Aderindo à
própria tradição e, ao mesmo tempo, consciente da sua missão universal,
é capaz de entrar em comunicação com as diversas formas de cultura, com
o que se enriquecem tanto a própria Igreja como essas várias culturas.
O Evangelho de Cristo renova
continuamente a vida e cultura do homem decaído, e combate e elimina os
erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado.
Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos. Fecunda como que por
dentro, com os tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de
todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em
Cristo (6). Deste modo, a Igreja, só com realizar a própria missão (7),
já com isso mesmo estimula e ajuda a civilização, e com a sua
actividade, incluindo a litúrgica, educa a interior liberdade do homem.
Harmonia entre as diversas ordens
humanas e culturais
59. Pelas razões aduzidas, a Igreja
lembra a todos que a cultura deve orientar-se para a perfeição integral
da pessoa humana, para o bem da comunidade e de toda a sociedade. Por
isso, é necessário cultivar o espírito de modo a desenvolver-lhe a.
capacidade de admirar, de intuir, de contemplar, de formar um juízo
pessoal e de cultivar o sentido religioso, moral e social.
Pois a cultura, uma vez que deriva
imediatamente da natureza racional e social do homem, tem uma constante
necessidade de justa liberdade e de legítima autonomia, de agir segundo
os seus próprios princípios para se desenvolver. Com razão, pois, exige
ser respeitada e goza duma certa inviolabilidade, salvaguardados,
evidentemente, os direitos da pessoa e da comunidade, particular ou
universal, dentro dos limites do bem comum.
O sagrado Concílio, recordando o que
ensinou o primeiro Concílio do Vaticano, declara que existem «duas
ordens de conhecimento» distintas, a da fé e a da razão, e que a Igreja
de modo algum proíbe que «as artes e disciplinas humanas usem de
princípios e métodos próprios nos seus campos respectivos»;
«reconhecendo esta justa liberdade», afirma por isso a legítima
autonomia da cultura humana e sobretudo das ciências (8).
Tudo isto requer também que,
salvaguardados a ordem moral e o bem comum, o homem possa investigar
livremente a verdade, expor e divulgar a sua opinião e dedicar-se a
qualquer arte; isto postula, finalmente, que seja informado com verdade
dos acontecimentos públicos (9).
À autoridade pública pertence, não
determinar o carácter próprio das formas de cultura mas favorecer as
condições e as ajudas necessárias para o desenvolvimento cultural de
todos, mesmo das minorias de alguma nação (10). Deve, por isso,
insistir-se, antes de mais, para que a cultura, desviando-se do seu fim,
não seja obrigada a servir as forças políticas ou económicas.
Secção 3
ALGUNS DEVERES MAIS
URGENTES DOS CRISTÃOS
COM RELAÇÃO À CULTURA
Reconhecimento do direito do homem à cultura
60. Dado que hoje há a possibilidade de
libertar muitos homens da miséria da ignorância, é dever muito próprio
do nosso tempo, principalmente para os cristãos, trabalhar enèrgicamente
para que, tanto no campo económico como no político, no nacional como no
internacional, se estabeleçam os princípios fundamentais segundo os
quais se reconheça e se actue em toda a parte efectivamente o direito de
todos à cultura correspondente à dignidade humana, sem discriminação de
raça, sexo, nação, religião ou situação social. Pelo que a todos se deve
suficiente abundância dos bens culturais, sobretudo daqueles que
constituem a chamada educação de base, a fim de que muitos, por causa do
analfabetismo e da privação duma actividade responsável, não se vejam
impedidos de contribuir para o bem comum de modo verdadeiramente humano.
Deve tender-se, portanto, para que todos
os que são disso capazes tenham a possibilidade de seguir estudos
superiores; de modo que subam na sociedade às funções, cargos e serviços
correspondentes às próprias aptidões ou à competência que adquirirem
(11). Deste modo, todos os homens e todos os agrupamentos sociais
poderão chegar ao pleno desenvolvimento da sua vida cultural, segundo as
qualidades e tradições próprias de cada um.
É preciso, além disso, trabalhar muito
para que todos tomem consciência, não só do direito à cultura, mas
também do dever que têm de se cultivar e de ajudar os outros nesse
campo. Existem, com efeito, por vezes, condições de vida e de trabalho
que impedem as aspirações culturais dos povos e destroem neles o desejo
da cultura. Isto vale especialmente para os camponeses e trabalhadores,
aos quais se devem proporcionar condições de trabalho tais que não
impeçam mas antes ajudem a sua cultura humana. As mulheres trabalham já
em quase todos os sectores de actividade; mas convém que possam exercer
plenamente a sua participação, segundo a própria índole. Será um dever
para todos reconhecer e fomentar a necessária e específica participação
das mulheres na vida cultural.
Educação cultural integral do
homem
61. É mais difícil hoje do que outrora
fazer uma síntese dos vários ramos do saber e das artes. Porque ao mesmo
tempo que aumenta a multidão e diversidade dos elementos que constituem
a cultura, diminui para cada homem a possibilidade de os compreender e
organizar; a figura do «homem universal» desaparece assim cada vez mais.
No entanto, cada homem continua a ter o dever de salvaguardar a
integridade da pessoa humana, na qual sobressaem os valores da
inteligência, da vontade, da consciência e da fraternidade, valores que
se fundam em Deus Criador e por Cristo foram admiràvelmente restaurados
e elevados.
A família é, prioritàriamente, como que
a mãe e a fonte da educação: nela, os filhos, rodeados de amor, aprendem
mais fàcilmente a recta ordem das coisas, enquanto que as formas
aprovadas da cultura vão penetrando como que naturalmente na alma dos
adolescentes, à medida que vão crescendo.
Para esta mesma educação existem nas
sociedades hodiernas, sobretudo graças à crescente difusão de livros e
aos novos meios de comunicação cultural e social, possibilidades que
podem favorecer a universalização da cultura. Com efeito, com a
diminuição generalizada do tempo de trabalho, crescem progressivamente
para muitos homens as facilidades para tal. Os tempos livres sejam bem
empregados, para descanso do espírito e saúde da alma e do corpo, ora
com actividades e estudos livremente escolhidos, ora com viagens a
outras regiões (turismo), com as quais sé educa o espírito e os homens
se enriquecem com o conhecimento mútuo, ora também com exercícios e
manifestações desportivas, que contribuem para manter o equilíbrio
psíquico, mesmo na comunidade, e para estabelecer relações fraternas
entre os homens de todas as condições e nações, ou de raças diversas .
Colaborem, portanto, os cristãos, a fim de que as manifestações e
actividades culturais colectivas, características do nosso tempo, sejam
penetradas de espírito humano e cristão.
Mas todas estas vantagens não
conseguirão levar o homem à educação cultural integral se, ao mesmo
tempo, não se tiver o cuidado de investigar o significado profundo da
cultura e da ciência para a pessoa humana.
Harmonia entre a cultura humana e a formação
cristã
62. Ainda que a Igreja muito tem
contribuído para o progresso cultural, mostra, contudo, a experiência
que, devido a causas contingentes, a harmonia da cultura com a doutrina
nem sempre se realiza sem dificuldades.
Tais dificuldades não são
necessàriamente danosas para a vida da fé; antes, podem levar o espírito
a uma compreensão mais exacta e mais profunda da mesma fé.
Efectivamente, as recentes investigações e descobertas das ciências, da
história e da filosofia, levantam novos problemas, que implicam
consequências também para a vida e exigem dos teólogos novos estudos.
Além disso, os teólogos são convidados a buscar constantemente, de
acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a
forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo;
porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra o modo
como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado
(12). Na actividade pastoral, conheçam-se e apliquem-se suficientemente,
não apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências
profanas, principalmente da psicologia e sociologia, para que assim os
fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta.
A literatura e as artes são também,
segundo a maneira que lhes é própria, de grande importância para a vida
da Igreja. Procuram elas dar expressão à natureza do homem, aos seus
problemas e à experiência das suas tentativas para conhecer-se e
aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua
situação na história e no universo, dar a conhecer as suas misérias e
alegrias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor.
Conseguem assim elevar a vida humana, que exprimem sob muito diferentes
formas, segundo os tempos e lugares.
Por conseguinte, deve trabalhar-se por
que os artistas se sintam compreendidos, na sua actividade, pela Igreja
e que, gozando duma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de
contactos com a comunidade cristã. A Igreja deve também reconhecer as
novas formas artísticas, que segundo o génio próprio das várias nações e
regiões se adaptam às exigências dos nossos contemporâneos. Sejam
admitidas nos templos quando, com linguagem conveniente e conforme às
exigências litúrgicas, levantam o espírito a Deus (13).
Deste modo, o conhecimento de Deus é
mais perfeitamente manifestado; a pregação evangélica torna-se mais
compreensível ao espírito dos homens e aparece como integrada nas suas
condições normais de vida.
Vivam, pois, os fiéis em estreita união
com os demais homens do seu tempo e procurem compreender perfeitamente o
seu modo de pensar e sentir, qual se exprime pela cultura. Saibam
conciliar os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e últimas
descobertas com os costumes e doutrina cristã, a fim de que a prática
religiosa e a rectidão moral acompanhem neles o conhecimento científico
e o progresso técnico e sejam capazes de apreciar e interpretar todas as
coisas com autêntico sentido cristão.
Os que se dedicam às ciências teológicas
nos Seminários e Universidades, procurem colaborar com os especialistas
doutros ramos do saber, pondo em comum trabalhos e conhecimentos. A
investigação teológica deve simultâneamente procurar um profundo
conhecimento da verdade revelada e não descurar a ligação com o seu
tempo, para que assim possa ajudar os homens formados nas diversas
matérias a alcançar um conhecimento mais completo da fé. Esta
colaboração ajudará muitíssimo a formação dos ministros sagrados. Estes
poderão assim expor de maneira mais adequada aos homens do nosso tempo a
doutrina da Igreja acerca de Deus, do homem e do mundo; e a sua palavra
por eles melhor acolhida (14). É, mesmo de desejar que muitos leigos
adquiram uma conveniente formação nas disciplinas sagradas e que muitos
deles se consagrem expressamente a cultivar e aprofundar estes estudos.
E para que possam desempenhar bem a sua tarefa, deve reconhecer-se aos
fiéis, clérigos ou leigos, uma justa liberdade de investigação, de
pensamento e de expressão da própria opinião, com humildade e fortaleza,
nos domínios da sua competência (15).
CAPÍTULO III
A VIDA
ECONÓMICO-SOCIAL
Alguns aspectos da vida económica actual
63. Também na vida económica e social se
devem respeitar e promover a dignidade e a vocação integral da pessoa
humana e o bem de toda a sociedade. Com efeito, o homem é o
protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social.
A economia actual, de modo semelhante ao
que sucede noutros campos da vida social, é caracterizada por um
crescente domínio do homem sobre a natureza, pela multiplicação e
intensificação das relações e mútua dependência entre os cidadãos,
grupos e nações e, finalmente, por mais frequentes intervenções do poder
político. Ao mesmo tempo, o progresso das técnicas de produção e do
intercâmbio de bens e serviços fizeram da economia um instrumento capaz
de prover mais satisfatòriamente às acrescidas necessidades da família
humana.
Mas não faltam motivos de inquietação.
Não poucos homens, com efeito, sobretudo nos países econòmicamente
desenvolvidos, parecem dominados pela realidade económica; toda a sua
vida está penetrada por um certo espírito economístico tanto nas nações
favoráveis à economia colectiva como nas outras. No preciso momento em
que o progresso da vida económica permite mitigar as desigualdades
sociais, se for dirigido e organizado de modo racional e humano, vemo-lo
muitas vezes levar ao agravamento das mesmas desigualdades e até em
algumas partes a uma regressão dos socialmente débeis e ao desprezo dos
pobres. Enquanto multidões imensas carecem ainda do estritamente
necessário, alguns, mesmo nas regiões menos desenvolvidas, vivem na
opulência e na dissipação. Coexistem o luxo e a miséria. Enquanto um
pequeno número dispõe dum grande poder de decisão, muitos estão quase
inteiramente privados da possibilidade de agir por própria iniciativa e
responsabilidade, e vivem e trabalham em condições indignas da pessoa
humana.
Semelhantes desequilíbrios se verificam
tanto entre a agricultura, a indústria e os serviços como entre as
diferentes regiões do mesmo país. A oposição entre as econòmicamente
mais desenvolvidas e as outras torna-se cada vez mais grave e pode pôr
em risco a própria paz mundial.
Os nossos contemporâneos têm uma
consciência cada vez mais viva destas desigualdades, pois estão
convencidos de que as maiores possibilidades técnicas e económicas de
que disfruta o mundo actual podem e devem corrigir este funesto estado
de coisas. Mas, para tanto, requerem-se muitas reformas na vida
económico-social. e uma mudança de mentalidade e de hábitos por parte de
todos. Com esse fim, a Igreja, no decurso dos séculos e sobretudo nos
últimos tempos, formulou e proclamou à luz do Evangelho os princípios de
justiça e equidade, postulados pela recta razão tanto na vida individual
e social como na internacional. O sagrado Concílio quer confirmar estes
princípios, tendo em conta as condições actuais e dar algumas
orientações, tendo presentes antes de mais as exigências do progresso
económico(1).
Secção 1
O DESENVOLVIMENTO
ECONÓMICO
Desenvolvimento económico ao
serviço do homem
64. Hoje, mais do que nunca, para fazer
frente ao aumento populacional e satisfazer às crescentes aspirações do
género humano, com razão se faz um esforço por aumentar a produção
agrícola e industrial e a prestação de serviços. Deve, por isso,
favorecer-se o progresso técnico, o espírito de inventiva, a criação e
ampliação dos empreendimentos, a adaptação dos métodos e os esforços
valorosos de todos os que participam na produção; numa palavra, todos os
factores que contribuem para tal desenvolvimento. Mas a finalidade
fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro
ou o poderio, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo
em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua
vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de qualquer homem ou
grupo de homens, de qualquer raça ou região do mundo. A actividade
económica, regulando-se pelos métodos e leis próprias, deve, portanto,
exercer-se dentro dos limites da ordem moral (2), para que assim se
cumpra o desígnio de Deus sobre o homem (3).
O controle do desenvolvimento
económico
65. O desenvolvimento económico deve
permanecer sob a direcção do homem; nem se deve deixar entregue só ao
arbítrio de alguns poucos indivíduos ou grupos economicamente mais
fortes ou só da comunidade política ou de algumas nações mais poderosas.
Pelo contrário, é necessário que, em todos os níveis, tenha parte na sua
direcção o maior número possível de homens, ou todas as nações, se se
trata de relações internacionais. De igual modo, é necessário que as
iniciativas dos indivíduos e das associações livres sejam coordenadas e
organizadas harmònicamente com a actividade dos poderes públicos.
O desenvolvimento não se deve abandonar
ao simples curso quase mecânico da actividade económica, ou à autoridade
pública sòmente. Devem, por isso, denunciar-se como erróneas tanto as
doutrinas que, a pretexto duma falsa liberdade, se opõem às necessárias
reformas, como as que sacrificam os direitos fundamentais dos indivíduos
e das associações à organização colectiva da produção (4).
Lembrem-se, de resto, os cidadãos, ser
direito e dever seu, que o poder civil deve reconhecer, contribuir, na
medida das próprias possibilidades, para o verdadeiro desenvolvimento da
sua comunidade. Sobretudo nas regiões economicamente menos
desenvolvidas, onde é urgente o emprego de todos os recursos
disponíveis, fazem correr grave risco ao bem comum todos aqueles que
conservam improdutivas as suas riquezas ou, salvo o direito pessoal de
emigração, privam a própria comunidade dos meios materiais ou
espirituais de que necessita.
A remoção das desigualdades
económico-sociais
66. Para satisfazer às exigências da
justiça e da equidade, é necessário esforçar-se enèrgicamente para que,
respeitando os direitos das pessoas e a índole própria de cada povo, se
eliminem o mais depressa possível as grandes e por vezes crescentes
desigualdades económicas actualmente existentes, acompanhadas da
discriminação individual e social. De igual modo, tendo em conta as
especiais dificuldades da agricultura em muitas regiões, quer na
produção quer na comercialização dos produtos, é preciso ajudar os
agricultores no aumento e venda da produção, na introdução das
necessárias transformações e inovações e na obtenção dum justo
rendimento; para que não continuem a ser, como muitas vezes acontece,
cidadãos de segunda categoria. Quanto aos agricultores, sobretudo os
jovens, dediquem-se com empenho a desenvolver a própria competência
profissional, sem a qual é impossível o progresso da agricultura (5).
É também exigência da justiça e da
equidade que a mobilidade, necessária para o progresso económico, seja
regulada de tal maneira que a vida dos indivíduos e das famílias não se
torne insegura e precária. Deve, portanto, evitar-se cuidadosamente toda
e qualquer espécie de discriminação quanto às condições de remuneração
ou de trabalho com relação aos trabalhadores oriundos de outro país ou
região, que contribuem com o seu trabalho para o desenvolvimento
económico da nação ou da província. Além disso, todos, e antes de mais
os poderes públicos, devem tratá-los como pessoas, e não como simples
instrumentos de produção, ajudá-los para que possam trazer para junto de
si a própria família e arranjar conveniente habitação, e favorecer a sua
integração na vida social do povo ou da região que os acolhe. Todavia,
na medida do possível, criem-se fontes de trabalho nas suas próprias
regiões.
Nas economias hoje em transformação, bem
como nas novas formas de sociedade industrial, nas quais, por exemplo, a
automação se vai impondo, deve ter-se o cuidado de que se proporcione a
cada um trabalho suficiente e adaptado, juntamente com a possibilidade
duma conveniente formação técnica e profissional; e garantam-se o
sustento e a dignidade humana sobretudo àqueles que, por causa de doença
ou de idade, têm maiores dificuldades.
Secção 2
ALGUNS PRINCÍPIOS
ORIENTADORES DE TODA A VIDA ECONÓMICO-SOCIAL
Trabalho, condições de trabalho, descanso
67. O trabalho humano, que se exerce na
produção e na troca dos bens económicos e na prestação de serviços,
sobreleva aos demais factores da vida económica, que apenas têm valor de
instrumentos.
Este trabalho, empreendido por conta
própria ou ao serviço de outrem, procede imediatamente da pessoa, a qual
como que marca com o seu zelo as coisas da natureza, e as sujeita ao seu
domínio. É com o seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a
própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve aos seus irmãos,
pode exercitar uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da
criação divina. Mais ainda: sabemos que, oferecendo a Deus o seu
trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo, o qual conferiu
ao trabalho uma dignidade sublime, trabalhando com as suas próprias mãos
em Nazaré. Daí nasce para cada um o dever de trabalhar fielmente, e
também o direito ao trabalho; à sociedade cabe, por sua parte, ajudar em
quanto possa, segundo as circunstâncias vigentes, os cidadãos para que
possam encontrar oportunidade de trabalho suficiente. Finalmente, tendo
em conta as funções e produtividade de cada um, bem como a situação da
empresa e o bem comum, o trabalho deve ser remunerado de maneira a dar
ao homem a possibilidade de cultivar dignamente a própria vida material,
social, cultural e espiritual e a dos seus (6).
Dado que a actividade económica é, na
maior parte dos casos, fruto do trabalho associado dos homens, é injusto
e desumano organizá-la e dispô-la de tal modo que isso resulte em
prejuízo para qualquer dos que trabalham.
Ora, é demasiado frequente, mesmo em
nossos dias, que os trabalhadores estão de algum modo escravizados à
própria actividade. Isto não encontra justificação alguma nas pretensas
leis económicas. É preciso, portanto, adaptar todo o processo do
trabalho produtivo às necessidades da pessoa e às formas de vida;
primeiro que tudo da doméstica, especialmente no que se refere às mães,
e tendo sempre em conta o sexo e a idade. Proporcione-se, além disso,
aos trabalhadores a possibilidade de desenvolver, na execução do próprio
trabalho, as suas qualidades e personalidade. Ao mesmo tempo que aplicam
responsàvelmente a esta execução o seu tempo e forças, gozem, porém,
todos de suficiente descanso e tempo livre para atender à vida familiar,
cultural, social e religiosa. Tenham mesmo oportunidade de desenvolver
livremente as energias e capacidades que talvez pouco possam exercitar
no seu trabalho profissional.
Participação na empresa e no conjunto da economia.
Conflitos de trabalho
68. Nas empresas económicas, são pessoas
as que se associam, isto é homens livres e autónomos, criados à imagem
de Deus. Por isso, tendo em conta as funções de cada um -proprietários,
empresários, dirigentes ou operários - e salva a necessária unidade de
direcção, promova-se, segundo modalidades a determinar convenientemente,
a participação activa de todos na gestão das empresas (7). E dado que
frequentemente não é ao nível da empresa mas num mais alto de
instituições superiores que se tomam as decisões económicas e sociais de
que depende o futuro dos trabalhadores e de seus filhos, eles devem
participar também no estabelecimento dessas decisões, por si ou por
delegados livremente eleitos.
Entre os direitos fundamentais da pessoa
humana deve contar-se o de os trabalhadores criarem livremente
associações que os possam representar autênticamente e contribuir para a
recta ordenação da vida económica; e ainda o direito de participar,
livremente, sem risco de represálias, na actividade das mesmas. Graças a
esta ordenada participação, junta com uma progressiva formação económica
e social, aumentará cada vez mais em todos a consciência da própria
função e dever; ela os levará a sentirem-se associados, segundo as
próprias possibilidades e aptidões, a todo o trabalho de desenvolvimento
económico e social e à realização do bem comum universal.
Quando, porém, surgem conflitos
económico-sociais, devem fazer-se esforços para que se chegue a uma
solução pacífica dos mesmos. Mas ainda que, antes de mais, se deva
recorrer ao sincero diálogo entre as partes, toda via, a greve pode
ainda constituir, mesmo nas actuais circunstâncias, um meio necessário,
embora extremo, para defender os próprios direitos e alcançar as justas
reivindicações dos trabalhadores. Mas procure-se retomar o mais depressa
possível o caminho da negociação e do diálogo da conciliação.
Os bens da terra, destinados a
todos
69. Deus destinou a terra com tudo o que
ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens
criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a
justiça, secundada pela caridade (8). Sejam quais forem as formas de
propriedade, conforme as legítimas instituições dos povos e segundo as
diferentes e mutáveis circunstâncias, deve-se sempre atender a este
destino universal dos bens. Por esta razão, quem usa desses bens, não
deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como
próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar
não só a si mas também aos outros (9). De resto, todos têm o direito de
ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias. Assim
pensaram os Padres e Doutores da Igreja, ensinando que os homens têm
obrigação de auxiliar os pobres e não apenas com os bens supérfluos
(10). Aquele, porém, que se encontra em extrema necessidade, tem direito
de tomar, dos bens dos outros, o que necessita (11). Sendo tão numerosos
os que no mundo padecem fome, o sagrado Concílio insiste com todos,
indivíduos e autoridades, para que, recordados daquela palavra dos
Padres - «alimenta o que padece fome, porque, se o não alimentaste,
mataste-o» (12) - repartam realmente e distribuam os seus bens,
procurando sobretudo prover esses indivíduos e povos daqueles auxílios
que lhes permitam ajudar-se e desenvolver-se a si mesmos.
Nas sociedades econòmicamente menos
desenvolvidas, o destino comum dos bens é frequentes vezes parcialmente
atendido graças a costumes e tradições próprias da comunidade, que
asseguram a cada membro os bens indispensáveis. Mas deve evitar-se
considerar certos costumes como absolutamente imutáveis, se já não
correspondem às exigências do tempo actual; por outro lado, não se
proceda imprudentemente contra os costumes honestos, que, uma vez
convenientemente adaptados às circunstâncias actuais, continuam a ser
muito úteis. De modo análogo, nas nações muito desenvolvidas
econòmicamente, um conjunto de instituições sociais de previdência e
seguro pode constituir uma realidade parcial do destino comum dos bens.
Deve prosseguir-se o desenvolvimento dos serviços familiares e sociais,
sobretudo daqueles que atendem à cultura e educação. Na organização de
todas estas instituições, porém, deve atender-se a que os cidadãos não
sejam levados a uma certa passividade com relação à sociedade ou à
irresponsabilidade e recusa de serviço.
Inversões e política monetária
70. Os investimentos, por sua parte,
devem tender a assegurar suficientes empregos e rendimentos, tanto para
a população actual como para a de amanhã. Todos os que decidem destes
investimentos e da organização da vida económica - indivíduos, grupos ou
poderes públicos - devem ter presentes estes fins e reconhecer a grave
obrigação que têm de vigiar para que assegurem os requisitos necessários
a uma vida digna dos indivíduos e de toda a comunidade; e, ainda, de
prever o futuro e garantir um são equilíbrio entre as necessidades do
consumo hodierno, individual e colectivo, e as exigências de
investimentos para a geração futura. Tenham-se sempre também em conta as
necessidades urgentes das nações ou regiões econòmicamente menos
desenvolvidas. Em matéria de política monetária, evite-se prejudicar o
bem quer da própria nação quer das outras. E tomem-se providências para
que os econòmicamente débeis não sofram injusto prejuízo com a
desvalorização da moeda.
Acesso à propriedade e domínio
privado. Problemas dos latifúndios
71. Dado que a propriedade e as outras
formas de domínio privado dos bens externos contribuem para a expressão
da pessoa e lhe dão ocasião de exercer a própria função na sociedade e
na economia, é de grande importância que se fomente o acesso dos
indivíduos e grupos a um certo domínio desses bens.
A propriedade privada ou um certo
domínio sobre os bens externos asseguram a cada um a indispensável
esfera de autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como
que uma extensão da liberdade humana. Finalmente, como estimulam o
exercício da responsabilidade, constituem uma das condições das
liberdades civis (13).
As formas desse domínio ou propriedade
são actualmente variadas e cada dia se diversificam mais. Mas todas
continuam a ser, apesar dos fundos sociais e dos direitos e serviços
assegurados pela sociedade, um factor não desprezível de segurança. O
que se deve dizer não só dos bens materiais, mas também dos imateriais,
como é a capacidade profissional.
No entanto, o direito à propriedade
privada não é incompatível com as várias formas legítimas de direito de
propriedade pública. Quanto à apropriação pública dos bens, ela só pode
ser levada a cabo pela legítima autoridade, segundo as exigências e
dentro dos limites do bem comum, e mediante uma compensação equitativa.
Compete, além disso, à autoridade pública impedir o abuso da propriedade
privada em detrimento do bem comum (14).
De resto, a mesma propriedade privada é
de índole social, fundada na lei do destino comum dos bens (15). O
desprezo deste carácter social foi muitas vezes ocasião de cobiças e de
graves desordens, chegando mesmo a fornecer um pretexto para os que
contestam esse próprio direito.
Em bastantes regiões econòmicamente
pouco desenvolvidas, existem grandes e até vastíssimas propriedades
rústicas, fracamente cultivadas ou até deixadas totalmente incultas com
intentos lucrativos, enquanto a maior parte do povo não tem terras ou
apenas possui pequenos campos e, por outro lado, o aumento da produção
agrícola apresenta um evidente carácter de urgência. Não raro, os que
são contratados a trabalhar pelos proprietários ou exploram, em regime
de arrendamento, uma parte das propriedades, apenas recebem um salário
ou um rendimento indigno de um homem, carecem de habitação decente e são
explorados pelos intermediários. Desprovidos de qualquer segurança,
vivem num tal regime de dependência pessoal que perdem quase por
completo a capacidade de iniciativa e responsabilidade e lhes está
vedada toda e qualquer promoção cultural ou participação na vida social
e política. Impõem-se, portanto, reformas necessárias, segundo os vários
casos: para aumentar os rendimentos, corrigir as condições de trabalho,
reforçar a segurança do emprego, estimular a iniciativa e, mesmo, para
distribuir terras não suficientemente cultivadas àqueles que as possam
tornar produtivas. Neste último caso, devem assegurar-se os bens e meios
necessários, sobretudo de educação e possibilidades duma adequada
organização cooperativa. Sempre, porém, que o bem comum exigir a
expropriação, a compensação deve ser equitativamente calculada, tendo em
conta todas as circunstâncias.
A actividade económico-social e o
reino de Cristo
72. Os cristãos que desempenham parte
activa no actual desenvolvimento económico-social e lutam pela justiça e
pela caridade, estejam convencidos de que podem contribuir muito para o
bem da humanidade e paz dó mundo. Em todas estas actividades, quer
sòzinhos quer associados, sejam exemplo para todos. Adquirindo a
competência e experiência absolutamente indispensáveis, respeitem a
devida hierarquia entre as actividades terrenas, fiéis a Cristo e ao seu
Evangelho, de maneira que toda a sua vida, tanto individual como social,
seja penetrada do espírito das bem-aventuranças, e especialmente do
espírito de pobreza. Todo aquele que, obedecendo a Cristo, busca
primeiramente o reino de Deus, recebe daí um amor mais forte e mais
puro, para ajudar os seus irmãos e realizar, sob o impulso da caridade,
a obra da justiça (16).
CAPÍTULO IV
A VIDA DA COMUNIDADE
POLÍTICA
A vida política actual
73. Profundas transformações se
verificam nos nossos dias também nas estruturas e instituições dos
povos, em consequência da sua evolução cultural, económica e social;
pois todas estas transformações têm uma grande influência na vida da
comunidade política, especialmente no que se refere aos direitos e
deveres de cada um no exercício da liberdade cívica, na promoção do bem
comum e na estruturação das relações dos cidadãos entre si e com o poder
público.
A consciência mais sentida da dignidade
humana dá origem em diversas regiões do mundo ao desejo de instaurar uma
ordem político-jurídica em que os direitos da pessoa na vida pública
sejam melhor assegurados, tais como os direitos de livre reunião e
associação, de expressão das próprias opiniões e de profissão privada e
pública da religião. A salvaguarda dos direitos da pessoa é, com efeito,
uma condição necessária para que os cidadãos, quer individualmente quer
em grupo, possam participar activamente na vida e gestão da coisa
pública.
Paralelamente com o progresso cultural,
económico e social, cresce em muitos o desejo de tomar maior parte na
organização da comunidade política. Aumenta na consciência de muitos o
empenho em assegurar os direitos das minorias, sem esquecer de resto os
seus deveres para com a comunidade política; cresce, além disso, cada
dia o respeito pelos homens que professam uma opinião ou religião
diferente; e estabelece-se ao mesmo tempo uma colaboração mais ampla, a
fim de que todos os cidadãos, e não apenas alguns privilegiados, possam
gozar realmente dós direitos da pessoa.
Condenam-se, pelo contrário, todas as
formas políticas, existentes em algumas regiões, que impedem a liberdade
civil ou religiosa, multiplicam as vítimas das paixões e dos crimes
políticos e desviam do bem comum o exercício da autoridade, em benefício
de alguma facção ou dos próprios governantes.
Para estabelecer uma vida política
verdadeiramente humana, nada melhor do que fomentar sentimentos
interiores de justiça e benevolência e serviço do bem comum e reforçar
as convicções fundamentais acerca da verdadeira natureza da comunidade
política, bem como do fim, recto exercício e limites da autoridade.
Natureza e fim da comunidade política
74. Os indivíduos, as famílias e os
diferentes grupos que constituem a sociedade civil, têm consciência da
própria insuficiência para realizar uma vida plenamente humana e
percebem a necessidade duma comunidade mais ampla, no seio da qual todos
conjuguem diàriamente as próprias forças para cada vez melhor promoverem
o bem comum (1). E por esta razão constituem, segundo diversas formas, a
comunidade política. A comunidade política existe, portanto, em vista do
bem comum; nele encontra a sua completa justificação e significado e
dele deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele
compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos
indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e fàcilmente a
própria perfeição (2).
Porém, os homens que se reunem na
comunidade política são muitos e diferentes, e podem legitimamente
divergir de opinião. E assim, para impedir que a comunidade política se
desagregue ao seguir cada um o próprio parecer, requere-se uma
autoridade que faça convergir para o bem comum as energias de todos os
cidadãos; não duma maneira mecânica ou despótica, mas sobretudo como
força moral, que se apoia na liberdade e na consciência do próprio dever
e sentido de responsabilidade.
Resulta, portanto, claro que a
comunidade política e a autoridade pública se fundam na natureza humana
e que, por conseguinte, pertencem à ordem estabelecida por Deus, embora
a determinação do regime político e a designação dos governantes se
deixem à livre vontade dos cidadãos (3).
Segue-se também que o exercício da
autoridade política, seja na comunidade como tal, seja nos organismos
representativos, se deve sempre desenvolver e actuar dentro dos limites
da ordem. moral, em vista do bem comum, dinâmicamente concebido, de
acordo com a ordem jurídica legitimamente estabelecida ou a estabelecer.
Nestas condições, os cidadãos têm obrigação moral de obedecer (4). Daqui
a responsabilidade, dignidade e importância dos que governam.
Mas quando a autoridade pública,
excedendo os limites da própria competência, oprime os cidadãos, estes
não se recusem às exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito,
dentro dos limites traçados pela lei natural e pelo Evangelho, defender
os próprios direitos e os dos seus concidadãos, contra o abuso desta
autoridade.
Os modos concretos como a comunidade
política organiza a própria estrutura e o equilíbrio dos poderes
públicos, podem variar, segundo a diferente índole e o progresso
histórico dos povos; mas devem sempre ordenar-se à formação de homens
cultos, pacíficos e benévolos para com todos, em proveito de toda a
família humana.
A colaboração de todos na vida
política
75. É plenamente conforme com a natureza
do homem que se encontrem estruturas jurídico-políticas nas quais todos
os cidadãos tenham a possibilidade efectiva de participar livre e
activamente, dum modo cada vez mais perfeito e sem qualquer
discriminação, tanto no estabelecimento das bases jurídicas da
comunidade política, como na gestão da coisa pública e na determinação
do campo e fim das várias instituições e na escolha dos governantes (5).
Todos os cidadãos se lembrem, portanto, do direito e simultâneamente
do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da promoção do
bem comum. A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao
bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, em serviço dos
homens.
Para que a cooperação responsável dos cidadãos leve a
felizes resultados na vida pública de todos os dias, é necessário que
haja uma ordem jurídica positiva, que estabeleça convenientemente
divisão das funções e dos orgãos da autoridade pública e ao mesmo tempo
protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem quer que
seja. Juntamente com os deveres a que todos os cidadãos estão obrigados,
sejam reconhecidos, assegurados e fomentados os direitos das pessoas,
famílias e grupos sociais, bem como o exercício dos mesmos. Entre
aqueles, é preciso recordar o dever de prestar à nação os serviços
materiais e pessoais que são requeridos pelo bem comum. Os governantes
tenham o cuidado de não impedir as associações familiares, sociais ou
culturais e os corpos ou organismos intermédios, nem os privem da sua
actividade legítima e eficaz; pelo contrário, procurem de bom grado
promovê-la ordenadamente. Evitem, por isso, os cidadãos quer individual
quer associativamente, conceder à autoridade um poder excessivo, nem lhe
peçam, de modo inoportuno, demasiadas vantagens e facilidades, de modo a
que se diminua a responsabilidade das pessoas, famílias e grupos
sociais.
A crescente complexidade das actuais circunstâncias
força com frequência o poder público a intervir nos assuntos sociais,
económicos e culturais, com o fim de introduzir condições mais
favoráveis em que os cidadãos e grupos possam livremente e com mais
eficácia promover o bem humano integral. As relações entre a
socialização (6) e a autonomia e desenvolvimento pessoais podem
conceber-se diferentemente, conforme a diversidade das regiões e o grau
de desenvolvimento dos povos. Mas quando, por exigência do bem comum, se
limitar temporàriamente o exercício dos direitos, restabeleça-se quanto
antes a liberdade, logo que mudem as circunstâncias. É, porém, desumano
que a autoridade política assuma formas totalitárias ou ditatoriais, que
lesam os direitos das pessoas ou dos grupos sociais.
Os cidadãos cultivem com magnanimidade e lealdade o amor
da pátria, mas sem estreiteza de espírito, de maneira que, ao mesmo
tempo, tenham sempre presente o bem de toda a família humana, que
resulta das várias ligações entre as raças, povos e nações.
Todos os cristãos tenham consciência da sua vocação
especial e própria na comunidade política; por ela são obrigados a dar
exemplo de sentida responsabilidade e dedicação pelo bem comum, de
maneira a mostrarem também com factos como se harmonizam a autoridade e
a liberdade, a iniciativa pessoal e a solidariedade do inteiro corpo
social, a oportuna unidade com a proveitosa diversidade. Reconheçam as
legítimas opiniões, divergentes entre si, acerca da organização da ordem
temporal, e respeitem os cidadãos e grupos que as defendem honestamente.
Os partidos políticos devem promover o que julgam ser exigido pelo bem
comum, sem que jamais seja lícito antepor o próprio interesse ao bem
comum.
Deve atender-se cuidadosamente à educação cívica e
política, hoje tão necessária à população e sobretudo aos jovens, para
que todos os cidadãos possam participar na vida da comunidade política.
Os que são ou podem tornar-se aptos para exercer a difícil e muito nobre
(7) arte da política, preparem-se para ela; e procurem exercê-la sem
pensar no interesse próprio ou em vantagens materiais. Procedam com
inteireza e prudência contra a injustiça e a opressão, contra o
arbitrário domínio de uma pessoa ou de um partido, e contra a
intolerância. E dediquem-se com sinceridade e equidade, mais ainda, com
caridade e fortaleza política, ao bem de todos.
A comunidade política e a Igreja
76. E de grande importância, sobretudo onde existe uma
sociedade pluralística, que se tenha uma concepção exacta das relações
entre a comunidade política e a Igreja, e, ainda, que se distingam
claramente as actividades que os fiéis, isoladamente ou em grupo,
desempenham em próprio nome como cidadãos guiados pela sua consciência
de cristãos, e aquelas que exercitam em nome da Igreja e em união com os
seus pastores.
A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de
modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer
sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e salvaguarda da
transcendência da pessoa humana.
No domínio próprio de cada uma, comunidade política e
Igreja são independentes e autónomas. Mas, embora por títulos diversos,
ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais
eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor
cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as
circunstâncias de lugar e tempo. Porque o homem não se limita à ordem
temporal sòmente; vivendo na história humana, fundada sobre o amor do
Redentor, ela contribui para que se difundam mais amplamente, nas nações
e entre as nações, a justiça e a caridade. Pregando a verdade evangélica
e iluminando com a sua doutrina e o testemunho dos cristãos todos os
campos da actividade humana, ela respeita e promove também a liberdade e
responsabilidade política dos cidadãos.
Os Apóstolos e os sucessores dos mesmos, com os seus
cooperadores, enviados para anunciar aos homens Cristo, salvador do
mundo, têm por sustentáculo do seu apostolado o poder de Deus, o qual
muitas vezes manifesta a força do Evangelho na fraqueza das suas
testemunhas. É preciso, pois, que todos os que se consagram ao
ministério da palavra de Deus utilizem os caminhos e meios próprios do
Evangelho, tantas vezes diferentes dos meios da cidade terrena.
É certo que as coisas terrenas e as que, na condição
humana, transcendem este mundo, se encontram intimamente ligadas; a
própria Igreja usa das coisas temporais, na medida em
que a sua missão o exige. Mas ela não coloca a sua esperança nos
privilégios que lhe oferece a autoridade civil; mais ainda, ela
renunciará ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos,
quando verificar que o seu uso põe em causa a sinceridade do seu
testemunho ou que novas condições de vida exigem outras disposições.
Porém, sempre lhe deve ser permitido pregar com verdadeira liberdade a
fé; ensinar a sua doutrina acerca da sociedade; exercer sem entraves a
própria missão entre os homens; e pronunciar o seu juízo moral mesmo
acerca das realidades políticas, sempre que os direitos fundamentais da
pessoa ou a salvação das almas o exigirem e utilizando todos e só
aqueles meios que são conformes com o Evangelho e, segundo a variedade
dos tempos e circunstâncias, são para o bem de todos.
Aderindo fielmente ao Evangelho e
realizando a sua missão no mundo, a Igreja -a quem pertence fomentar e
elevar tudo o que de verdadeiro, bom e belo se encontra na comunidade
dos homens (8) - consolida, para glória de Deus, a paz entre os homens
(9).
CAPÍTULO V
A PROMOÇÃO DA PAZ E
A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Necessidade e desejos actuais da paz
77. Nestes nossos tempos, em que as
dores e angústias derivadas da guerra ou da sua ameaça ainda oprimem tão
duramente os homens, a família humana chegou a uma hora decisiva no seu
processo de maturação. Progressivamente unificada, e por toda a parte
mais consciente da própria unidade, não pode levar a cabo a tarefa que
lhe incumbe de construir um mundo mais humano para todos os homens, a
não ser que todos se orientem com espírito renovado à verdadeira paz. A
mensagem evangélica, tão em harmonia com os mais altos desejos e
aspirações do género humano, brilha assim com novo esplendor nos tempos
de hoje, ao proclamar felizes os construtores da paz «porque serão
chamados filhos de Deus» (Mt. 5,9). Por isso, o Concílio, explicando a
verdadeira e nobilíssima natureza da paz, e uma vez condenada a
desumanidade da guerra, quer apelar ardentemente para que os cristãos,
com a ajuda de Cristo, autor da paz, colaborem com todos os homens no
estabelecimento da paz na justiça e no amor e na preparação dos
instrumentos da mesma paz.
Natureza da paz e sua consecução
78. A paz não é ausência de guerra; nem
se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem
resulta duma dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela
é chamada «obra da justiça» (Is. 32, 7). É um fruto da ordem que o
divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser
realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça.
Com efeito, o bem comum do género humano é regido, primária e
fundamentalmente, pela lei eterna; mas, quanto às suas exigências
concretas, está sujeito a constantes mudanças, com o decorrer do tempo.
Por esta razão, a paz nunca se alcança duma vez para sempre, antes deve
estar constantemente a ser edificada. Além disso, como a vontade humana
é fraca e ferida pelo pecado, a busca da paz exige o constante domínio
das paixões de cada um e a vigilância da autoridade legítima. Mas tudo
isto não basta. Esta paz não se pode alcançar na terra a não ser que se
assegure o bem das pessoas e que os homens compartilhem entre si livre e
confiadamente as riquezas do seu espírito criador. Absolutamente
necessárias para a edificação da paz são ainda a vontade firme de
respeitar a dignidade dos outros homens e povos e a prática assídua da
fraternidade. A paz é assim também fruto do amor, o qual vai além do que
a justiça consegue alcançar. A paz terrena, nascida do amor do próximo,
é imagem e efeito da paz de Cristo, vinda do Pai. Pois o próprio Filho
encarnado, príncipe da paz, reconciliou com Deus, pela cruz, todos os
homens; restabelecendo a unidade de todos num só povo e num só corpo,
extinguiu o ódio (1) e, exaltado na ressurreição, derramou nos corações
o Espírito de amor.
Todos os cristãos são, por isso,
insistentemente chamados a que «praticando
a verdade na caridade» (Ef. 4, 15), se unam com os homens
verdadeiramente pacíficos para implorarem e edificarem a paz.
Levados pelo mesmo espírito, não podemos
deixar de louvar aqueles que, renunciando à violência na reivindicação
dos próprios direitos, recorrem a meios de defesa que estão também ao
alcance dos mais fracos — sempre que
isto se possa fazer sem lesar os direitos e obrigações de outros ou da
comunidade.
Na medida em que os homens são
pecadores, o perigo da guerra ameaça-os e continuará a ameaça-los até à
vinda de Cristo; mas na medida em que, unidos em caridade, superam o
pecado, superadas ficam também as lutas, até que se realize aquela
palavra: «com as espadas forjarão arados e foices com as lanças. Nenhum
povo levantará a espada contra outro e jamais se exercitarão para a
guerra» (Is. 2, 4).
Secção 1
EVITAR A GUERRA
Refrear a crueldade das guerras
79. Apesar de as últimas guerras terem
trazido tão grandes danos materiais e morais, ainda todos os dias a
guerra leva por diante as suas devastações em alguma parte da terra.
Mais ainda, o emprego de armas científicas de todo o género para fazer a
guerra, ameaça, dada a selvajaria daquelas, levar os combatentes a uma
barbárie muito pior que a de outros tempos. Além disso, a complexidade
da actual situação e o intrincado dos relações entre países tornam
possível o prolongar-se de guerras mais ou menos larvadas, pelo recurso
a novos métodos insidiosos e subversivos. Em muitos casos, o recurso aos
métodos do terrorismo é considerado como uma nova forma de guerra.
Tendo diante dos olhos este estado de
prostração da humanidade, o Concílio quer, antes de mais, recordar o
valor permanente do direito natural internacional e dos seus princípios
universais. A. própria consciência da humanidade afirma cada vez com
maior força estes princípios. As acções que lhes são deliberadamente
contrárias, bem como as ordens que as mandam executar, são portanto,
criminosas; nem a obediência cega pode desculpar os que as cumprem.
Entre tais actos devem-se contar, antes de mais, aqueles com que se leva
metòdicamente a cabo o extermínio de toda uma raça, nação ou minoria
étnica. Tais acções devem ser veementemente condenadas como horríveis
crimes e louvada no mais alto grau a coragem de quantos não temem
resistir abertamente aos que as querem impor.
Existem diversas convenções
internacionais relativas à guerra assinadas por bastantes nações, e que
visam a tornar menos desumanas as actividades bélicas e suas
consequências; tais, por exemplo, as que se referem à sorte dos soldados
feridos ou prisioneiros, e outras semelhantes. Estes acordos devem ser
observados. Mais ainda, todos, sobretudo os poderes públicos e os
peritos nestas matérias, têm obrigação de procurar aperfeiçoa-los quanto
lhes for
possível, de maneira a que sejam capazes
de melhor e mais eficazmente refrearem a crueldade das guerras. Parece,
além disso, justo que as leis tenham em conta com humanidade o caso
daqueles que, por motivo de consciência, recusam combater, contanto que
aceitem outra forma de servir a comunidade humana.
Na realidade, a guerra não foi eliminada
do mundo dos homens. E enquanto existir o perigo de guerra e não houver
uma autoridade internacional competente e dotada dos convenientes meios,
não se pode negar aos governos, depois de esgotados todos os recursos de
negociações pacíficas, o direito de legítima defesa. Cabe assim aos
governantes e aos demais que participam na responsabilidade dos negócios
públicos, o dever de assegurar a defesa das populações que lhes estão
confiadas, tratando com toda a seriedade um assunto tão sério. Mas uma
coisa é utilizar a força militar para defender justamente as populações,
outra coisa é querer subjugar as outras nações. O poderio bélico não
legitima qualquer uso militar ou político que dele se faça. Nem,
finalmente, uma vez começada lamentàvelmente a guerra, já tudo se torna
lícito entre as partes beligerantes.
Aqueles que se dedicam ao serviço da
pátria no exército, considerem-se servidores da segurança e da liberdade
dos povos; na medida em que se desempenham como convém desta tarefa,
contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da paz.
A guerra total
80. Com o incremento das armas
científicas, tem aumentado desmesuradamente o horror e maldade da
guerra. Pois, com o emprego de tais armas, as acções bélicas podem
causar enormes e indiscriminadas destruições, que desse modo já vão
muito além dos limites da legítima defesa. Mais ainda: se se empregasse
integralmente o material existente nos arsenais das grandes potências,
resultaria daí o quase total e recíproco extermínio de ambos os
adversários, sem falar nas inúmeras devastações provocadas no mundo e
nos funestos efeitos que do uso de tais armas se seguiriam.
Tudo isto nos força a considerar a
guerra com um espírito inteiramente novo (2). Saibam os homens de hoje
que darão grave conta das suas actividades bélicas. Pois das suas
decisões actuais dependerá em grande parte o curso dos tempos futuros.
Tendo em atenção todas estas coisas, e
fazendo suas as condenações da guerra total já anteriormente
pronunciadas pelos Sumos Pontífices (3), este sagrado Concílio declara:
Toda a acção bélica que tende
indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões e
seus habitantes é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve
condenar com firmeza e sem hesitação.
O perigo peculiar da guerra hodierna
está em que ela fornece, por assim dizer, a oportunidade de cometer tais
crimes àqueles que estão de posse das modernas armas científicas; e, por
uma consequência quase fatal, pode impelir as vontades dos homens às
mais atrozes decisões. Para que tal nunca venha a suceder, os Bispos de
todo o mundo, reunidos, imploram a todos, sobretudo aos governantes e
chefes militares, que ponderem sem cessar a sua tão grande
responsabilidade perante Deus e a humanidade.
A corrida aos armamentos
81. É verdade que não se acumulam as
armas científicas só com o fim de serem empregadas na guerra. Com
efeito, dado que se pensa que a solidez defensiva de cada parte depende
da sua capacidade de resposta fulminante, esta acumulação de armas, que
aumenta de ano para ano, serve, paradoxalmente, para dissuadir possíveis
inimigos. Muitos pensam que este é hoje o meio mais eficaz para
assegurar uma certa paz entre as nações.
Seja o que for deste meio de dissuasão,
convençam-se os homens de que a corrida aos armamentos, a que se
entregam muitas nações, não é caminho seguro para uma firme manutenção
da paz; e de que o pretenso equilíbrio daí resultante não é uma paz
segura nem verdadeira. Corre-se o perigo de que, com isso, em vez de se
eliminarem as causas da guerra, antes se agravem progressivamente. E
enquanto se dilapidam riquezas imensas no constante fabrico de novas
armas, torna-se impossível dar remédio suficiente a tantas misérias de
que sofre o mundo actualmente. Mais do que sanar verdadeiramente e
plenamente as discórdias entre as nações, o que se consegue é contagiar
com elas outras partes do mundo. É preciso escolher outros caminhos,
partindo da reforma das mentalidades, para eliminar este escândalo e
poder-se restituir ao mundo, liberto da angústia que o oprime, uma paz
verdadeira.
Por tal razão, de novo se deve declarar
que a corrida aos armamentos é um terrível flagelo para a humanidade e
prejudica os pobres dum modo intolerável. E é muito de temer, se ela
continuar, que um dia provoque as exterminadoras calamidades de que já
presentemente prepara os meios.
Advertidos pelas calamidades que o
género humano tornou possíveis, aproveitemos o tempo de que ainda
dispomos para, tornados mais conscientes da própria responsabilidade,
encontrarmos os caminhos que tornem possível resolver os nossos
conflitos dum modo mais digno de homens. A providência divina
instantemente nos pede que nos libertemos da antiga servidão da guerra.
Se nos recusamos a fazer este esforço, não sabemos aonde nos levará o
funesto caminho por onde enveredámos.
Proscrição total da guerra e acção
internacional para a evitar
82. É, portanto, claro, que nos devemos
esforçar por todos os meios por preparar os tempos em que, por comum
acordo das nações, se possa interditar absolutamente qualquer espécie de
guerra. Isto exige, certamente, a criação duma autoridade pública
mundial, por todos reconhecida e com poder suficiente para que fiquem
garantidos a todos a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito
dos direitos. Porém, antes que esta desejável autoridade possa ser
instituída, é necessário que os supremos organismos internacionais se
dediquem com toda a energia a buscar os meios mais aptos para conseguir
a segurança comum. Já que a paz deve antes nascer da confiança mútua do
que ser imposta pelo terror das armas, todos devem trabalhar por que se
ponha, finalmente, um termo à corrida aos armamentos e por que se inicie
progressivamente e com garantias reais e eficazes, a redução dos mesmos
armamentos, não unilateral evidentemente, mas simultânea e segundo o que
for estatuído (4).
Entretanto, não se devem subestimar as
tentativas já feitas ou ainda em curso para afastar o perigo da guerra.
Procure-se antes ajudar a boa vontade de muitos que, carregados com as
ingentes preocupações dos seus altos ofícios, mas movidos do seriíssimo
dever que os obriga, se esforçam por eliminar a guerra de que têm
horror, embora não possam prescindir da complexidade objectiva das
situações. E dirijam-se a Deus instantes preces, para que lhes dê a
força necessária para empreender com perseverança e levar a cabo com
fortaleza esta obra de imenso amor dos homens, de construir virilmente a
paz. Hoje em dia, isto exige certamente deles que alarguem o espírito
mais além das fronteiras da própria nação, deponham o egoísmo nacional e
a ambição de dominar sobre os outros países, fomentem um grande respeito
por toda a humanidade, que já avança tão laboriosamente para uma maior
unidade.
As sondagens até agora diligente e
incansàvelmente levadas a cabo acerca dos problemas da paz e
desarmamento, e as reuniões internacionais que trataram deste assunto,
devem ser consideradas como os primeiros passos para a solução de tão
graves problemas e devem no futuro promover-se ainda com. mais empenho,
para obter resultados práticos. No entanto, evitem os homens entregar-se
apenas aos esforços de alguns, sem se preocuparem com a própria
mentalidade. Pois os governantes, responsáveis pelo bem comum da própria
nação e ao mesmo tempo promotores do bem de todo o mundo, dependem muito
das opiniões e sentimentos das populações. Nada aproveitarão com
dedicar-se à edificação da paz, enquanto os sentimentos de hostilidade,
desprezo e desconfiança, os ódios raciais e os preconceitos ideológicos
dividirem os homens e os opuserem uns aos outros. Daqui a enorme
necessidade duma renovação na educação das mentalidades e na orientação
da opinião publica. Aqueles que se consagram à obra de educação,
sobretudo da juventude, ou que formam a opinião pública, considerem como
gravíssimo dever o procurar formar as mentalidades de todos para novos
sentimentos pacíficos. Todos nós temos, com efeito, de reformar o nosso
coração, com os olhos postos no mundo inteiro e naquelas tarefas que
podemos realizar juntos para o progresso da humanidade.
Não nos engane uma falsa esperança. A
não ser que, pondo de parte inimizades e ódios, se celebrem no futuro
pactos sólidos e honestos acerca dá paz universal, a humanidade, que já
agora corre grave risco, chegará talvez desgraçadamente, apesar da sua
admirável ciência, àquela hora em que não conhecerá outra paz além da
horrível tranquilidade da morte. Mas, ao mesmo tempo que isto afirma, a
Igreja de Cristo, no meio das angústias do tempo actual, não deixa de
esperar firmemente. A nossa época quer ela propor, uma e outra vez,
oportuna e importunamente, a mensagem do Apóstolo: «eis agora o tempo
favorável» para a conversão dos corações, «eis agora os dias da salvação
(5).
Secção 2
CONSTRUÇÃO DA
COMUNIDADE INTERNACIONAL
Causas e remédios das discórdias
83. Para edificar a paz, é preciso,
antes de mais, eliminar as causas das discórdias entre os homens, que
são as que alimentam as guerras, sobretudo as injustiças. Muitas delas
provêm das excessivas desigualdades económicas e do atraso em lhes dar
remédios necessários. Outras, porém, nascem do espírito de dominação e
do desprezo das pessoas; e, se buscamos causas mais profundas, da
inveja, desconfiança e soberba humanas, bem como de outras paixões
egoístas. Como o homem não pode suportar tantas desordens, delas provém
que, mesmo sem haver guerra, o mundo está continuamente envenenado com
as contendas e violências entre os homens. E como se verificam os mesmos
males nas relações entre as nações, é absolutamente necessário, para os
vencer ou prevenir, e para reprimir as violências desenfreadas, que os
organismos internacionais cooperem e se coordenem melhor e que se
fomentem incansàvelmente as organizações que promovem a paz.
A comunidade das nações e instituições
internacionais
84. Para que o bem comum universal se
procure convenientemente e se alcance com eficácia, torna-se já
necessário, dado o aumento crescente de estreitos laços de mútua
dependência entre todos os cidadãos e entre todos os povos do mundo, que
a comunidade dos povos se dê a si mesma uma estrutura à altura das
tarefas actuais, sobretudo relativamente àquelas numerosas regiões que
ainda padecem intolerável indigência.
Para obter tais fins, as instituições da
comunidade internacional devem prover, cada uma por sua parte, às
diversas necessidades dos homens, no domínio da vida social - a que
pertencem a alimentação, saúde, educação, trabalho - como em certas
circunstâncias particulares, que podem surgir aqui ou ali, tais como a
necessidade geral de favorecer o progresso das nações em vias de
desenvolvimento, de obviar às necessidades dos refugiados dispersos por
todo o mundo, ou ainda de ajudar os emigrantes e suas famílias.
As instituições internacionais, mundiais
ou regionais, já existentes, são beneméritas do género humano. Aparecem
como as primeiras tentativas para lançar os fundamentos internacionais
da inteira comunidade humana, a fim de se resolverem os gravíssimos
problemas dos nossos tempos, se promover o progresso em todo o mundo e
se prevenir qualquer forma de guerra. A Igreja alegra-se com o espírito
de verdadeira fraternidade que em todos estes campos floresce entre
cristãos e não-cristãos, e tende a intensificar os esforços por remediar
tão grande miséria.
A cooperação internacional no campo económico
85. A unificação actual do género humano requer também
uma cooperação internacional mais ampla no campo económico. Com efeito,
embora quase todos os povos se tenham tornado
independentes, estão ainda longe de se encontrarem livres de excessivas
desigualdades ou de qualquer forma de dependência indevida, ou ao abrigo
de graves dificuldades internas.
O crescimento dum país depende dos
recursos humanos e financeiros. Em cada nação, os cidadãos devem ser
preparados pela educação e formação profissional, para desempenharem as
diversas funções da vida económica e social. Para tal, requere-se a
ajuda de peritos estrangeiros; estes, ao darem tal ajuda, não procedam
como dominadores, mas como auxiliares e cooperadores. Não será possível
prestar o auxílio material às nações em desenvolvimento, se não se
mudarem profundamente no mundo as estruturas do comércio actual. Os
países desenvolvidos prestar-lhes-ão ainda ajuda sob outras formas, tais
como dons, empréstimos ou investimentos financeiros; os quais se devem
prestar generosamente e sem cobiça, por uma das parte, e receber com
inteira honestidade, pela outra.
Para se estabelecer uma autêntica ordem
económica internacional, é preciso abolir o apetite de lucros
excessivos, as ambições nacionais, o desejo de domínio político, os
cálculos de ordem militar bem como as manobras para propagar e impor
ideologias. Apresentam-se muitos sistemas económicos e sociais; é de
desejar que os especialistas encontrem neles as bases comuns dum são
comércio mundial; o que mais fàcilmente se conseguirá, se cada um
renunciar aos próprios preconceitos e se mostrar disposto a um diálogo
sincero.
Algumas normas oportunas
86. Para tal cooperação, parecem
oportunas as seguintes normas:
a) As nações em desenvolvimento ponham
todo o empenho em procurar firmemente que a finalidade expressa do seu
progresso seja a plena perfeição humana dos cidadãos. Lembrem-se que o
progresso se origina e cresce, antes de mais, com o trabalho e engenho
das populações, pois deve apoiar-se não apenas nos auxílios
estrangeiros, mas sobretudo no desenvolvimento dos próprios recursos e
no cultivo das qualidades e tradições próprias. Neste ponto, devem
sobressair aqueles que têm maior influência nos outros.
b) É dever muito grave dos povos
desenvolvidos ajudar os que estão em vias de desenvolvimento a realizar
as tarefas referidas. Levem, portanto, a cabo, em si mesmos, as
adaptações psicológicas e materiais que são necessárias para estabelecer
esta cooperação internacional. E assim, nas negociações com as nações
mais fracas e pobres, atendam com muito cuidado ao bem das mesmas; pois
elas necessitam, para seu sustento, dos lucros alcançados com a venda
dos bens que produzem.
c) Cabe à comunidade internacional
coordenar e estimular o desenvolvimento de modo a que os recursos a isso
destinados sejam utilizados com o máximo de eficácia e total equidade.
Também a ela pertence, sempre dentro do respeito pelo princípio de
subsidiariedade, regular as relações económicas no mundo inteiro de modo
que se desenvolvam segundo a justiça.
Criem-se instituições aptas para
promover e regular o comércio internacional, sobretudo com as nações
menos desenvolvidas, e para compensar as deficiências que ainda
perduram, nascidas da excessiva desigualdade de poder entre as nações.
Esta ordenação, acompanhada de ajudas técnicas, culturais e financeiras,
deve proporcionar às nações em vias de desenvolvimento os meios
necessários para poderem conseguir convenientemente o progresso da
própria economia.
d) Em muitos casos, é urgente
necessidade rever as estruturas económicas e sociais. Mas evitem-se as
soluções técnicas prematuramente propostas, sobretudo aquelas que,
trazendo ao homem vantagens materiais, são opostas à sua natureza
espiritual e ao seu progresso. Com efeito, «o homem não vive só de pão,
mas também de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt. 4, 4). E
qualquer parcela da família humana leva em si mesma e nas suas melhores
tradições uma parte do tesouro espiritual confiado por Deus à
humanidade, mesmo que muitos desconheçam a origem donde procede.
A cooperação internacional no que
se refere ao incremento demográfico
87. A cooperação internacional é
especialmente necessária no caso, actualmente bastante frequente,
daqueles povos que, além de muitas outras dificuldades, sofrem
especialmente da que deriva dum rápido aumento da população. É
urgentemente necessário que, por meio duma plena e intensa cooperação de
todos, e sobretudo das nações mais ricas, se investigue o modo de tornar
possível preparar e fazer chegar a toda a humanidade o que é preciso
para a subsistência e conveniente educação dos homens. Mas alguns povos
poderiam melhorar muito as suas condições de vida se, devidamente
instruídos, passassem dos métodos arcaicos de exploração agrícola para
as técnicas modernas, aplicando-as com a devida prudência à própria
situação, instaurando, além disso, uma melhor ordem social e procedendo
a uma distribuição mais justa da propriedade das terras.
Com relação ao problema da população, na
própria nação e dentro dos limites da própria competência, tem o governo
direitos e deveres; assim, por exemplo, no que se refere à legislação
social e familiar, ao êxodo das populações agrícolas para as cidades, à
informação acerca da situação e necessidades nacionais. Dado que hoje
este problema preocupa intensamente os espíritos, é também de desejar
que especialistas católicos, sobretudo nas Universidades, prossigam e
ampliem diligentemente os estudos e iniciativas sobre estas matérias.
Visto que muitos afirmam que o aumento
da população do globo, ou ao menos de algumas nações, deve ser absoluta
e radicalmente diminuído por todos os meios e por qualquer espécie de
intervenção da autoridade pública, o Concílio exorta todos a que evitem
as soluções, promovidas privada ou pùblicamente ou até por vezes
impostas, que sejam contrárias à lei moral. Porque, segundo o
inalienável direito ao casamento e procriação da prole, a decisão acerca
do número de filhos depende do recto juízo dos pais e de modo algum se
pode entregar ao da autoridade pública. Mas como o juízo dos pais
pressupõe uma consciência bem formada, é de grande importância que todos
tenham a possibilidade de cultivar uma responsabilidade recta e
autênticamente humana, que tenha em conta a lei divina, consideradas as
circunstâncias objectivas e temporais; isto exige, porém, que por toda a
parte melhorem as condições pedagógicas e sociais e, antes de mais, que
seja dada uma formação religiosa ou, pelo menos, uma íntegra educação
moral. Sejam também as populações judiciosamente informadas acerca dos
progressos científicos alcançados na investigação dos métodos que ajudam
os esposos na determinação do número de filhos, cuja segurança esteja
bem comprovada e de que conste claramente a legitimidade moral.
O dever dos cristãos na ajuda
internacional
88. Os cristãos cooperem de bom grado e
de todo o coração na construção da ordem internacional com verdadeiro
respeito pelas liberdades legítimas e na amigável fraternidade de todos;
e tanto mais quanto é verdade que a maior parte do mundo ainda sofre
tanta necessidade, de maneira que, nos pobres, o próprio Cristo como que
apela em alta voz para a caridade dos seus discípulos. Não se dê aos
homens o escândalo de haver algumas nações, geralmente de maioria
cristã, na abundância, enquanto outras não têm sequer o necessário para
viver e são atormentadas pela fome, pela doença e por toda a espécie de
misérias. Pois o espírito de pobreza e de caridade são a glória e o
testemunho da Igreja de Cristo.
São, por isso, de louvar e devem ser
ajudados os cristãos, sobretudo jovens, que se oferecem espontâneamente
para ir em ajuda dos outros homens e povos. Mais ainda: cabe a todo o
Povo de Deus, precedido pela palavra e exemplo dos Bispos, aliviar,
quanto lhe for possível, as misérias deste tempo; e isto, como era. o
antigo uso da Igreja, não sòmente com o supérfluo, mas também com o
necessário.
Sem cair numa organização rígida e
uniforme, deve, no entanto, o modo de recolher e distribuir estes
socorros ser regulado com uma certa ordem, nas dioceses, nações e em
todo o mundo; e onde parecer oportuno, conjugando a actividade dos
católicos com a dos outros irmãos cristãos. Porque o espírito de
caridade, longe de se opor a um exercício providente e ordenado da
actividade social e caritativa, antes o exige. Pelo que é necessário que
os que pretendem dedicar-se ao serviço das nações em vias de
desenvolvimento, recebam conveniente formação em instituições adequadas.
A presença eficaz da Igreja na
comunidade internacional
89. Quando a Igreja, em virtude da sua
missão divina, prega a todos os homens o Evangelho e lhes dispensa os
tesouros da graça, contribui para a consolidação da paz em todo o mundo
e para estabelecer um sólido fundamento para a fraterna comunidade dos
homens e dos povos, a saber: o conhecimento da lei divina e natural. É,
portanto, absolutamente necessário que a Igreja esteja presente na
comunidade das nações, para fomentar e estimular a cooperação entre os
homens; tanto por meio das suas instituições públicas como graças à
inteira e sincera colaboração de todos os cristãos, inspirada apenas
pelo desejo de servir a todos.
O que se alcançará mais eficazmente se
os fiéis, conscientes da própria responsabilidade humana e cristã,
procurarem já no seu meio de vida despertar a vontade de cooperar
prontamente com a comunidade internacional. Dedique-se especial cuidado
em formar neste ponto a juventude, tanto na educação religiosa como na
cívica.
A cooperação dos cristãos nas
instituições internacionais
90. Uma das melhores formas de actuação
internacional dos cristãos consiste certamente na cooperação que,
isoladamente ou em grupo, prestam nas próprias instituições criadas ou a
criar para o desenvolvimento da cooperação entre as nações. Também podem
contribuir muito para a edificação da comunidade dos povos, na paz e
fraternidade, as várias associações católicas internacionais, as quais
devem ser consolidadas, com o aumento de colaboradores bem formados, e
dos meios de que necessitam e com uma conveniente coordenação de forças.
Nos tempos actuais, com efeito, tanto a eficácia da acção como a
necessidade do diálogo reclamam empreendimentos colectivos. Essas
associações contribuem, além disso, não pouco também para desenvolver o
sentido de universalidade, muito próprio dos católicos, e para formar a
consciência da solidariedade e responsabilidade verdadeiramente
universais.
Finalmente, é de desejar que os
católicos, para bem cumprirem a sua missão na comunidade internacional,
procurem cooperar activa e positivamente quer com os irmãos separados
que com eles professam a caridade evangélica, quer com todos os homens
que anelam verdadeiramente pela paz.
Perante as imensas desgraças que ainda
hoje torturam a maior parte da humanidade, e para fomentar por toda a
parte a justiça e ao mesmo tempo o amor de Cristo para com os pobres, o
Concílio, por sua parte, julga muito oportuna a criação de algum
organismo da Igreja universal, incumbido de estimular a comunidade
católica na promoção do progresso das regiões necessitadas e da justiça
social entre as nações.
CONCLUSÃO
Dever dos fiéis e das Igrejas
particulares
91. Tudo o que, tirado dos tesouros da
doutrina da Igreja, é proposto por este sagrado Concílio, pretende
ajudar todos os homens do nosso tempo, quer acreditem em Deus, quer não
O conheçam explicitamente, a que, conhecendo mais claramente a sua
vocação integral, tornem o mundo mais conforme à sublime dignidade do
homem, aspirem a uma fraternidade universal mais profundamente fundada
e, impelidos pelo amor, correspondam com um esforço generoso e comum às
urgentes exigências da nossa era.
Certamente, perante a imensa diversidade
de situações e de formas de cultura existentes no mundo, esta proposição
de doutrina reveste intencionalmente, em muitos pontos, apenas um
carácter genérico; mais ainda: embora formule uma doutrina aceite na
Igreja, todavia, como se trata frequentemente de realidades sujeitas a
constante transformação, deve ainda ser continuada e ampliada.
Confiamos, porém, que muito do que enunciámos apoiados na palavra de
Deus e no espírito do Evangelho, poderá proporcionar a todos uma ajuda
válida, sobretudo depois de os cristãos terem levado a cabo, sob a
direcção dos pastores, a adaptação a cada povo e mentalidade.
Diálogo entre todos os homens
92. Em virtude da sua missão de iluminar
o mundo inteiro com a mensagem de Cristo e de reunir sob um só Espírito
todos os homens, de qualquer nação, raça ou cultura, a Igreja constitui
um sinal daquela fraternidade que torna possível e fortalece o diálogo
sincero.
Isto exige, em primeiro lugar, que,
reconhecendo toda a legítima diversidade, promovamos na própria Igreja a
mútua estima, respeito e concórdia, em ordem a estabelecer entre todos
os que formam o Povo de Deus, pastores ou fiéis, um diálogo cada vez
mais fecundo. Porque o que une entre si os fiéis é bem mais forte do que
o que os divide: haja unidade no necessário, liberdade no que é
duvidoso, e em tudo caridade(1).
Abraçamos também em espírito os irmãos
que ainda não vivem em plena comunhão connosco, e as suas comunidades,
com os quais estamos unidos na confissão do Pai, Filho e Espírito Santo,
e pelo vínculo da caridade, lembrados de que a unidade dos cristãos é
hoje esperada e desejada mesmo por muitos que não crêem em Cristo. Com
efeito, quanto mais esta unidade progredir na verdade e na caridade,
pela poderosa acção do Espírito Santo, tanto mais será para o mundo um
presságio de unidade e de paz. Unamos, pois, as nossas forças e, cada
dia mais fiéis ao Evangelho, procuremos, por modos cada vez mais
eficazes para alcançar este fim tão alto, cooperar fraternalmente no
serviço da família humana, chamada, em Cristo, a tornar-se a família dos
filhos de Deus.
Voltamos também o nosso pensamento para
todos os que reconhecem Deus e guardam nas suas tradições preciosos
elementos religiosos e humanos, desejando que um diálogo franco nos leve
a todos a receber com fidelidade os impulsos do Espírito e a segui-los
com entusiasmo.
Por nossa parte, o desejo de um tal
diálogo, guiado apenas pelo amor pela verdade e com a necessária
prudência, não exclui ninguém; nem aqueles que cultivam os altos valores
do espírito humano, sem ainda conhecerem o seu autor; nem aqueles que se
opõem à Igreja, e de várias maneiras a perseguem. Como Deus Pai é o
princípio e o fim de todos eles, todos somos chamados a ser irmãos. Por
isso, chamados pela mesma vocação humana e divina, podemos e devemos
cooperar pacificamente, sem violência nem engano, na edificação do mundo
na verdadeira paz.
A edificação do mundo e a sua
orientação para Deus
93. Lembrados da palavra do Senhor:
«nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns
aos outros» (Jo. 13, 35), os cristãos nada podem desejar mais
ardentemente do que servir sempre com maior generosidade e eficácia os
homens do mundo de hoje. E assim, fiéis ao Evangelho e graças à sua
força, unidos a quantos amam e promovem a justiça, têm a realizar aqui
na terra uma obra imensa, da qual prestarão contas Aquele que a todos
julgará no último dia. Nem todos os que dizem «Senhor, Senhor» entrarão
no reino dos céus, mas aqueles que cumprem a vontade do Pai (2) e põem
sèriamente mãos a obra. Ora, a vontade do Pai é que reconheçamos e
amemos efectivamente em todos os homens a Cristo, por palavra e por
obras, dando assim testemunho da verdade e comunicando aos outros o
mistério do amor do Pai celeste. Deste modo, em toda a terra, os homens
serão estimulados à esperança viva, dom do Espírito Santo, para que
finalmente sejam recebidos na paz e felicidade infinitas, na pátria que
refulge com a glória do Senhor.
«Aquele que, em virtude do poder que
actua em nós, é capaz de fazer que superabundemos para além do que
pedimos ou pensamos, a Ele seja dada a glória na Igreja e em Cristo
Jesus, por todos os séculos dos séculos. Amém» (Ef. 3, 20-21).
Roma, 7 de Dezembro de 1965
PAPA PAULO VI
Notas
Proémio - Introdução
1. A Constituição pastoral
«A Igreja no mundo actual», formada
por duas partes, constitui um todo unitário. E chamada «pastoral»,
porque, apoiando-se em princípios doutrinais, pretende expor as relações
da Igreja com o mundo e os homens de hoje. Assim, nem à primeira parte
falta a intenção pastoral, nem à segunda a doutrinal. Na primeira parte,
a Igreja expõe a sua própria doutrina acerca do homem, do mundo no qual
o homem está integrado e da sua relação para com eles. Na segunda,
considera mais expressamente vários aspectos da vida e da sociedade
contemporâneas, e sobretudo as questões e os problemas que, nesses
domínios, padecem hoje de maior urgência. Daqui resulta que, nesta
segunda parte, a matéria, tratada à luz dos princípios doutrinais, não
compreende apenas elementos imutáveis, mas também transitórios. A
Constituição deve, pois, ser interpretada segundo as normas teológicas
gerais, tendo em conta, especialmente na segunda parte, as
circunstâncias mutáveis com que estão intrinsecamente ligados os
assuntos em questão.
2. Cfr. Jo. 18,37.
3. Cfr. Jo. 3, 17; Mt. 20, 28; Mc.
10,45.
4. Cfr. Rom. 7,14 s.
5. Cfr. 2 Cor. 5,15.
6. Cfr. Act. 4,12.
7. Cfr. Hebr. 13,8.
8. Cfr. Col. 1,15.
PRIMEIRA PARTE
Capítulo I
1. Cfr. Gén. 1,26; Sab. 2,23.
2. Cfr. Ecli. 17, 3-10.
3. Cfr. Rom. 1, 21-25.
4. Cfr. Jo. 8,34.
5. Cfr. Dan. 3, 57-90.
6. Cfr. 1 Cor. 6, 13-20.
7. Cfr. 1 Reis 16,7; Jer. 17.10.
8. Cfr. Ecli. 17, 7-8.
9. Cfr. Rom. 2, 14-16.
10. Cfr. Pio XII, radiomensagem acerca
da formação da consciência cristã nos jovens, 23 março 1952: AAS 44
(1952), p. 271.
11. Cfr. Mt. 22, 37-40; Gál. 5,14.
12 Cfr. Ecli. 15,14.
13. Cfr. 2 Cor. 5,10.
14. Cfr. Sab. 1,13; 2, 23-24; Rom. 5,21;
6,23; Tg. 1,15.
15. Cfr. 1 Cor. 15, 56-57.
16. Cfr. Pio XI, Enc. Divini
Redemptoris, 19 março 1937: AAS 29 (1937), p. 65-106; Pio XII, Enc.
Ad Apostolorum Principis, 29 junho 1958: AAS 50 (1958), p.
601-614; João XXIII, Enc. Mater et Magistra, 15 maio 1961: AAS 53
(1961) p. 451-453; Paulo VI, Enc. Ecclesiam Suam, 6 agosto 1964:
AAS 56 (1964), p. 651-653.
17. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De
Ecclesia, Lumen gentium, cap. I, n. 8: AAS 57 (1965), p. 12.
18. Cfr. Fil. 1,27.
19. S. Agostinho, Confissões, I,
1: PL 32, 661.
20. Cfr. Rom. 5,14. Cfr. Tertuliano,
De carpis resurr. 6: «Quodcumque
limus exprimebatur, Christus cogitabatur homo futurus»: PL 2, 802
(848); CSEL, 47, p. 33, 1. 12-13.
21. Cfr. 2 Cor. 4,4.
22.Cfr. Conc. Constant. II, can. 7:
«Neque Deo Verbo in carpis
naturam transmutato, neque carne in Verbi naturam transducta»:
Denz. 219 (428). Cfr. também Conc. Constant. III: « Quemadmodum enim
sanctissima ac immaculata animata eius caro deificata non est perempta
(theôtheisa ouk anërethe), sed in próprio sui statu et ratione permansit»:
Denz. 291 (556). Cfr. Conc. Calc.: «in duabus naturis inconfuse,
immutabiliter, indivise, inseparabiliter agnoscentum»:
Denz. 148 (302).
23. Cfr. Conc. Constant. III: «ita et
humana eius voluntas deificata non. est perempta»:
Denz. 291 (556).
24 Cfr. Hebr. 4,15. 25 Cfr. 2
25. Cfr. 2Cor. 5, 18-19; Col. 1, 20-22.
26. Cfr. 1Ped. 2, 2; Mt. 16,24; Lc. 14,
27.
27. Cfr. Rom. 8, 29; Col. 1,18.
28. Cfr. Rom. 8, 1-11.
29. Cfr. 2 Cor. 4,14.
30. Cfr. Fil. 3,10; Rom. 8,17.
31. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De
Ecclesia, Lumen gentium, cap. II, n. 16: AAS 57 (1965), p. 20.
32. Cfr. Rom. 8,32.
33. Cfr. Liturgia Pascal bizantina.
34. Cfr. Rom. 8,15 e Gal. 4,6; Jo. 1,12
e Jo. 3, 1-2.
Capítulo II
1. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et
Magistra, 15 maio 1961: AAS 53 (1961) p. 401-464; Enc. Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), p. 257-304; Paulo VI, Enc.
Ecclesiam suam, 6 agosto 1964: AAS 54 (1964), p. 609-659.
2. Cfr. Lc. 17,23.
3. Cfr. S. Tomás, 1 Ethic. lect.
1.
4. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et
Magistra: AAS 53 (1961), p. 418. Cfr. também Pio XI, Enc.
Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 222 ss.
5. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et
Magistra: AAS 53 (1961), P. 417.
6. Cfr. Mc. 2,27.
7. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in
terris: AAS 55 (1963), p. 266.
8. Cfr. Tg. 2, 15-16.
9. Cfr. Lc. 16, 19-31.
10. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in
terris: AAS 55 (1963), p. 299-300.
11. Cfr. Lc. 6, 37-38; Mt. 7, 1-2; Rom.
2, 1-11; 14, 10-12.
12. Cfr. Mt. 5, 45-47.
13. Cfr.. Conc. Vat. II, Const. dogm. De
Ecclesia, Lumen gentium, cap. II, 9: AAS 57 (1965), p. 12-13.
14. Cfr. Ex. 24, 1-8.
Capítulo III
1. Cfr. Gén. 1, 26-27; 9, 2-3.
2. Cfr. Salm. 8,7 e 10.
3. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55
(1963), p. 297.
4. Cfr. Mensagem enviada à humanidade
pelos Padres Conciliares no início do Concílio Vaticano II, outubro
1962: AAS 54 (1962), p. 822-823.
5. Cfr. Paulo VI, Alocução ao Corpo
diplomático, 7 janeiro 1965: AAS 57 (1965), p. 232.
6. Cfr. Conc. Vat. I, Const. dogma De
fide cath., cap. III: Denz. 1785-1786 (3004-3005).
7. Cfr. Pio Paschini, Vita e opere di
Galileo Galilei, 2 vol. Academia Pontifícia de Ciências, cidade do
Vaticano, 1964.
8. Cfr. Mt. 24,13; 13, 24-30 e 36-43.
9. Cfr. 2 Cor. 6,10.
10. Cfr, Jo. 1,3 e 14.
11. Cfr. Ef. 1,10.
12. Cfr. Jo. 3, 14-16; Rom. 5, 8-10.
13. Cfr. Act. 2,36; Mt. 28,18.
14. Cfr. Rom. 15,16.
15. Cfr. Act. 1,7.
16. Cfr. 1 Cor. 7,31; S. Ireneu,
Adversus Haereses, V, 36: PG VII, 1222.
17. Cfr. 2 Cor. 5,2; 2 Ped. 3,13.
18. Cfr. 1 Cor. 2,9; Apoc. 21, 4-5.
19. Cfr. 1 Cor. 15,42 e 53.
20. Cfr. 1 Cor. 13,8; 3,14.
21. Cfr. Rom. 8, 19-21.
22. Cfr. Lc. 9,25.
23. Cfr. Pio XI, Enc. Quadragesimo
anno: AAS 23 (1931), p. 207.
24. Missal romano, Prefácio da
festa de Cristo Rei.
Capítulo IV
1. Cfr. Paulo VI, Enc. Ecclesiam suam,
III: AAS 56 (1964), p. 637-659.
2. Cfr. Tit. 3,4: « philanthropia».
3. Cfr. Ef. 1,3. 5-6. 13-14. 23.
4. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De
Ecelesia, Lumen gentium, cap. I, n. 8: AAS 57 (1965), p. 12.
5. Ibid. cap. II, n. 9: AAS 57 (1965),
p. 14; efr. n. 8: AAS 1. c., p. 11.
6. Ibid. cap. I, n. 8: AAS (1965), p.
11.
7. Cfr. Ibid. cap. IV, n. 38: AAS 57
(1965), p. 43, com a nota 120.
8. Cfr. Rom. 8, 14-17.
9. Cfr. Mt. 22,39
10. Const. dogm. De Ecclesia, Lumen
gentium, cap. II, n. 9: AAS 57 (1965), p. 12-14.
11. Cfr. Pio XII, Alocução aos cultores
de história e de arte, 9 março 1956: AAS 48 (1956), p. 212:
«O seu divino fundador, Jesus Cristo, não lhe deu nenhum
mandato nem fixou nenhum fim de ordem cultural. O fim que Cristo lhe
assinala é estritamente religioso (...) A Igreja deve conduzir os
homens a Deus, para que eles se Lhe entreguem sem reservas (...)
A Igreja jamais poderá perder de vista este fim estritamente religioso,
sobrenatural. O sentido de todas as suas actividades, até ao último
cánon do seu Direito, não pode ser outro senão concorrer para isso
directa ou indirectamente.
12. Const. dogm. De Ecclesia, Lumen
gentium, cap. I, n. 1: AAS 57 (1965), p. 5.
13. Cfr. Hebr. 13,14.
14. Cfr. 2 Tess. 3, 6-13; Ef. 4,28.
15. Cfr. Is. 58, 1-12.
16. Cfr. Mt. 23, 3-33; Mc. 7, 10-13.
17. Cfr. João XXIII. Ene. Mater et
Magistra, IV: AAS 53 (1961), p. 456-457; e I: 1. c., p. 407,
410-411.
18. Cfr. Const. dogm. De Ecelesia,
Lumen gentium, cap. III, n. 28: AAS 57 (1965), p. 34-35.
19. Ibid. n. 28: AAS, 1, c., p. 35-36.
20. Cfr. S. Ambrósio, De Virginitate,
cap. VIII, n. 48: PL 16, 278.
21. Cfr. Const. dogm. De Ecclesia,
Lumen gentium, cap. II, n. 15: AAS 57 (1965), p. 20.
22. Cfr. Const. dogm. De Ecclesia,
Lumen gentium, cap. II, n. 13: AAS 57 (1965), p. 17.
23. Cfr. Justino, Dialogus cum
Tryphone, cap. 110: PG 6, 729 (ed. Otto), 1897, p. 391-393: «...sed
quanto magis talia nobis infliguntur, tanto plures alii fideles et pii
per nomen Jesu fiunt». Cfr. Tertuliano, Apologeticus, cap.
50, 13: PL 1,534; Cchr, ser. lat., I, p. 171:
«Etiam plures efficimur, quotiens
metimur a vobis: semen est sanguis christianorum», Cfr. Const. dogm.
De Ecclesia, Lumen gentium, cap. VII, n. 48: AAS 57 (1965), p.
53.
24. Cfr. Const. dogm. Lumen Gentium
c 2 n. 15: AAS 57 (1965), p. 21.
25. Cfr. Paulo VI, Alocução, 3 fev.
1965: L'Osservatore Romano, 4 fev. 1965.
II PARTE
Capítulo I
1. Cfr. S. Agostinho, De bono
coniugali: PL 40, 375-376 e 394. S. Tomás, Summa Theol.,
Suppl. Quaest. 49 art. 3 ad 1; Decretum pro Armenis: Denz.-Schön.
702 (1327) ; Pio XI, Ene. Casti Connubii: AAS 22 (1930), p. 543-555,
Denz.-Schön. 2227-2238.
2 Cfr. Pio XI, Enc. Casti Connubii:
AAS 22 (1930), p. 546-547; Denz.-Schön. (3703-3714).
3. Cfr. Os. 2; Jer. 3, 6-13; Ez. 16 e
23; Is. 54.
4. Cfr. Mt. 9,15; Mc. 2, 19-20; Lc. 5,
34-35; Jo. 3,29; 2 Cor. 11,2; Ef. 5,27; Apoc. 19, 7-8; 21,2 e 9.
5. Cfr. Ef. 5,25.
6. Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De
Ecelesia, Lumen gentium: AAS 57 (1965), p. 15-16; 40-41; 47.
7. Pio XI, Enc. Casti Connubii:
AAS 22 (1930), p. 583.
8. Cfr. 1 Tim. 5, 3.
9. Cfr. Ef. 5, 32.
10. Cfr. Gén. 2, 22. 24; Prov. 5, 18-20;
31, 10-31; Tob. 8,4-8; Cant. 1, 2-3; 2,16; 4,16-5,1; 7, 8-11; 1 Cor. 7,
3-6; Ef. 5, 25-33.
11. Cfr. Pio XI, Enc. Casti Connubii:
AAS 22 (1930), p. 547-548; Denz.-Schön. 2232 (3707).
12. Cfr. 1 Cor. 7,5.
13. Cfr. Pio XII, Alocução Tra le
visite, 20 janeiro 1958: AAS 50 (1958), p. 91.
14. Cfr. Pio XI, Enc. Casti Connubii:
AAS 22 (1930), p. 559-561: Denz.-Schön. 3716-3718; Pio XII, Alocução ao
Congresso da União Italiana de parteiras, 29 de outubro 1951: AAS 43
(1951), p. 835-854; Paulo VI, Alocução ao Sacro Colégio, 23 junho 1964:
AAS 56 (1964), p. 581-589. Certas questões que requerem outras
investigações mais aprofundadas, foram confiadas, por mandato do Sumo
Pontífice, a uma Comissão para o estudo da população, da família e da
natalidade; uma vez terminados os seus trabalhos, o Sumo Pontífice
pronunciará o seu juízo. No actual estado da doutrina do magistério, o
sagrado Concílio não pretende propor imediatamente soluções concretas.
15. Cfr. Ef. 5,16; Col. 4,5.
16. Cfr. Sacramentarium Gregorianum:
PL 78, 262.
17. Cfr. Rom. 5,15 e 18; 6 5-11; Gál.
2,20.
18. Cfr. Ef. 5, 25-27.
Capítulo II
1. Cfr. Introdução, n. 4-10.
2. 2 Cfr. Col. 3, 1-2.
3. Cfr. Gén. 1,28.
4. Cfr. Prov. 8, 30-31.
5. Cfr. S. Ireneu, Adversus Haereses,
III, 11, 8: ed. Sagnard, p. 200; cfr. ibid. 16,6: p. 290-292; 21, 10-22:
p. 370-371; 22, 3; p. 378; etc.
6. Cfr. Ef. 1,10.
7. Cfr. Palavras de Pio XII ao R. P.
M.-D. Roland-Gosselin: «É preciso não perder nunca de vista, que o
objectivo da igreja é evangelizar e não civilizar. Se ela civiliza, é
pela evangelização» (Semana social de Versailles, 1936, p.
461-462).
8. Conc. Vat. I, Const. Dei Filius,
e. IV: Denz. 1795, 1799 (3015, 3019). Cfr. Pio XI, Enc. Quadragesimo
anno: AAS 23 (1931), p. 190.
9. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in
terris: AAS 55 (1963), p. 260.
10. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in
terris: AAS 55 (1963), p. 283; Pio XII, Radiomensagem, 24 dezembro
1941: AAS 34 (1942), p. 16-17.
11. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in
terris: AAS 55 (1963), p. 260
12. Cfr. João XXIII, Discurso inaugural
do Concílio, 11 outubro 1962: AAS 54 (1962), p. 792.
13. Cfr. Const. De Sacra Liturgia,
sacrosanctum concilium n. 123: AAS 56 (1964), p. 131; Paulo VI,
Discurso aos artistas romanos: AAS 56 (1964), p. 439-442.
14. Cfr. Conc. Vat. II, Decreto De
institutione sacerdotali, Optatam totius, e Declaração de
educatione christiana, Gravissimum educationis.
15. Cfr. Const. dogm. De Ecclesia,
Lumen gentium, cap. IV, n. 37: AAS 57 (1965), p. 42-43.
Capítulo III
1. Cfr. Pio XII, Mensagem, 23 março
1952; AAS 44 (1952), p.273; João XXIII, Alocução à A. C. Italiana, 1
maio 1959: AAS 51 (1959), p. 358.
2. Cfr. Pio XI, Enc. Quadragesimo
anno: AAS 23 (1931), p. 190 s.; Pio XII, Mensagem, 23 março 1952:AAS
44 (1952), p. 276 s.; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53
(1961), p. 450; Conc. Vat. II, Decreto De instrumentis communicationis
socialis, Inter mirifica, cap. I, n. 6: AAS 56 (1954), p. 147.
3. Cfr. Mt. 16,26; Lc. 16 1-31; Col.
3,17.
4. Cfr. Leão XIII, Enc. Libertas
praestantissimum, 20 jun. 1888: AAS 20 (1887-88), p. 597 s.; Pio XI,
Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 191 s.; ID., Enc.
Divini Redemptoris: AAS 29 (1937), p. 65 s.; Pio XII, Mensagem
natalícia 1941: AAS 34 (1942), p. 10 s.; João XXIII, Enc. Mater et
Magistra: AAS 53 (1961), p. 401-464.
5. Quanto ao problema da agricultura,
cfr. sobretudo João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961),
p. 341 s.
6. Cfr. Leão XIII, Enc. Rerum Novarum:
ASS 23 (1890-1891), p. 649-662; Pio XI, Enc. Quadragesimo anno:
A.AS 23 (1931), p. 200-201; ID., Enc. Divini Redemptoris: AAS 29
(1937), p. 92; Pio XII, Radiomensagem na vigília do Natal de 1942: AAS
35 (1943),.p. 20; ID., Alocução, 13 junho 1943: AAS 35 (1943), p. 172;
ID:, Radiomensagem aos operários espanhóis, 11 março 1951: AAS 43
(1951), p. 215; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53
(1961), p. 419.
7. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et
Magistra: AAS 53 (1961), p. 408, 424, 427; a palavra
«curatione» foi tirada do texto
latino da Enc. Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 199. Sob o
aspecto da evolução desta questão. cfr. também Pio XII, Alocução, 3
junho 1950: AAS 42 (1950), p. 485-488; Paulo VI, Alocução, 8 junho 1964:
AAS 56 (1964), p. 574-579.
8 Cfr. Pio XII, Enc. Sertum laetitiae:
AAS 31 (1939), p. 642; João XXIII, Alocução consistorial: AAS 52 (1960),
p. 5-11; ID., Enc. Mater et Magistra: AAS 53 (1961), p. 411.
9. Cfr. S. Tomás, Summa Theol.
II-II, q. 32, a. 5 ad 2; Ibid. q. 66, a. 2; cfr. explicação em Leão
XIII, Enc. Rerum Novarum: AAS 20 (1890-1891), p. 651; cfr. também
Pio XII, Alocução, 1 junho 1941: AAS 33 (1941), p. 199; ID.,
Radiomensagem natalícia 1954: AAS 47 (1955), p. 27.
10. Cfr. S. Basílio, Hom. in Mud
Lucae «Destruam horrea mea», n. 2: PG 31, 263; Lactâncio,
Divinarum institutionum, L. V., de iustitia: PL 6, 565 B; S.
Agostinho, In Joann. Ev. tr. 50, n. 6: PL 35, 1760; ID.,
Enarratio in Ps. CXLVII, 12: PI: 37, 192; S. Gregório M.,
Homiliae in Ev., hom. 20: PL 76, 1165; ID., Regulae Pastoralis
liber, parte III, cap. 21: PL 77, 87; S. Boaventura, In III Sent.
d. 33, dub. 1 (ed. Quaracchi III, 728) ; ID. In IV Sent., d. 15,
p. II, a. 2, q. 1 (ed. cit. IV, 371b) ; q. de superfluo (ms. da
Bibl. mun. de Assis, 186, ff. 112ª-113ª; S. Alberto Magno, In III
Sent., d. 33, a. 3. sol. 1 (ed. Borgnet XXVIII, 611) ; ID., In IV
Sent., d. 15, a. 16 (ed. cit. XXIX, 494-497). Quanto à determinação
do supérfluo actualmente, cfr. João XXIII, Mensagem radiotelevisiva, 11
setembro 1962. AAS 54 (1962), p. 682: «Dever de cada homem, dever
urgente do cristão é considerar o supérfluo com a medida das
necessidades alheias, e de vigiar que a administração e a distribuição
dos bens criados sejam dispostas para vantagem de todos».
11. Nesse caso, vale o antigo principio:
«na necessidade extrema, todas as coisas são comuns, isto é,
todas as coisas devem ser tornadas comuns». Por outro lado, segundo o
modo, extensão e medida em que se aplica o principio no texto aduzido,
além dos autores modernos aprovados: cfr. S. Tomás, Summa Theol.
H-II, q. 66, a. 7. É claro que para a recta aplicação do princípio todas
as condições moralmente exigidas devem ser respeitadas.
12. Cfr. Decr. Gratiani, C. 21,
d. LXXXVI (ed. Friedberg I, 302). Este dito encontra-se já em PL 54, 491
A e PL 56, 1132 B. (cfr. Antonianum 27 (1952), p. 349-366).
13. Cfr. Leão XIII, Enc. Rerum
Novarum: AAS 20 (1890-1891), p. 643-646; Pio XI, Enc.
Quadragesimo anno: AAS 23 (1931), p. 191; Pio XII, Radiomensagem, 1
junho 1941: AAS 33 (1941), p. 199; ID., Radiomensagem na vigília de
Natal 1942: AAS 35 (1943), p. 17; ID., Radiomensagem, 1 setembro 1944:
AAS 36 (1944), p. 253; João XXIII, Enc. Mater et Magistra: AAS 53
(1961), p. 428-429.
14. Cfr. Pio XI, Enc. Quadragesimo
anno: AAS 23 (1931), p. 214; João XXIII, Enc. Mater et Magistra:
AAS 53 (1961), p. 429.
15. Cfr. Pio XII, Radiomensagem,
Pentecostes 1941: AAS 44 (1941), p. 199. João XXIII, Enc. Mater et
Magistra: AAS 53 (1961), p. 430.
16. Para o recto uso dos bens segundo a
doutrina do Novo Testamento, cfr. Lc. 3,11; 10,30 s.; 11,41; 1 Ped. 5,3;
Mc. 8,36; 12, 30-31; Tg. 5, 1-6; 1 Tim. 6,8; Ef, 4,28; 2 Cor. 8,13; 1
Jo. 3, 17-18.
Capítulo IV
1. Cfr. João XXIII, Enc. Mater et
Magistra: AAS 53 (1961), p. 417.
2. Cfr. ID., ibid.
3. Cfr. Rom. 13, 1-5.
4. Cfr. Rom. 13,5.
5. Cfr. Pio XII, Radiomensagem, 24
dezembro 1942: AAS 35 (1943), p. 9-24; 24 dezembro 1944: AAS 37 (1945),
p. 11-17, João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55 (1963), p.
263, 271, 277-278.
6. João XXIII, Enc. Mater et Magistra:
AAS 53 (1961), p. 415-418.
7. Pio XI, Alocução aos dirigentes da federação
Universitária Católica: Discorsi di Pio XI (ed. Bertetto), Turim, vol. 1
(1960), p. 743.
8. Cfr. Conc. Vaticano II, Const. dogm.
De Ecclesia, Lumen gentium, n. 13: A.AS 57 (1965), p. 17.
9. Cfr. Lc. 2,14.
Capítulo V
1. Cfr. Ef. 2, 16; Col. 1, 20-22.
2. Cfr. João XXIII, Enc. Pacem in
terris, 11 abril 1963: AAS 55 (1963), p. 291: Por isso, nesta nossa
idade, que se gloria da força atómica, é fora de razão pensar que a
guerra é um meio apto para ressarcir os direitos violados».
3. Cfr. Pio XII, Alocução, 30 setembro
1954: AAS 46 (1954), p. 589; Radiomensagem, 24 setembro 1954: AAS 47
(1955), p. 15 s.; João XXIII, Enc. Pacem in terris: AAS 55
(1963), p. 286-291; Paulo VI, Alocução na Assembleia das Nações Unidas,
4 outubro 196'5: AAS 57 (1965), p. 877-885.
4. Cfr. João XXIII, Ene. Pacem in
terris, onde se fala da diminuição dos armamentos: AAS 55 (1963), p.
287.
5. Cfr. 2 Cor. 6, 2.
Conclusão
1. Cfr. João XXIII, Enc. Ad Petri
Cathedram, 29 junho 1959: AAS 55 (1959), p. 513.
2. Cfr. Mt. 7, 21.
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